TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
629 acórdão n.º 422/20 (Patrícia Fragoso Martins, “Princípio do Primado…” , cit., p. 53). Note-se que tal ideia – a de que a natureza constitucional do Direito interno dos Estados-membros em caso algum afastaria o primado do DUE – já estava implícita na construção originária do princípio em 1964 no acórdão Costa c. ENEL . Aí a observamos, com efeito, na expressividade abrangente e incondicionada da seguinte passagem: “[…] ao direito emergente do Tratado, emanado de uma fonte autónoma, em virtude da sua natureza originária específica, não pode ser oposto em juízo um texto interno, qualquer que seja, sem que perca a sua natureza comunitária e sem que sejam postos em causa os fundamentos jurídicos da própria Comunidade. A transferência efetuada pelos Estados, da sua ordem jurídica interna em benefício da ordem jurídica comunitária, dos direitos e obrigações correspondentes às disposições do Tratado, implica, pois, uma limitação definitiva dos seus direi- tos soberanos, sobre a qual não pode prevalecer um ato unilateral ulterior incompatível com o conceito de Comunidade”. 2.3.3.1. Não obstante, a afirmação inequívoca da vigência do princípio do primado no caso das normas constitucionais dos Estados-membros – que poderemos descrever como o assumir da projeção deste a um estádio superior (acrescentando-lhe, sem dúvida, uma nova camada de assertividade) – só veio a constar de uma decisão do Tribunal de Justiça proferida em 17 de dezembro de 1970, o acórdão Internationale Handels gesellschaft mbH v. Einfuhr-und Vorratsstelle für Getreide und Futtermittel (processo n.º 11/70). Na origem deste pronunciamento do Tribunal de Justiça encontramos o reenvio prejudicial de um Tribunal alemão questionando a validade de um regime (com algum paralelismo com o que está em causa no presente processo) previsto num Regulamento comunitário (o Regulamento n.º 120/67/CEE, do Con- selho de 13 de junho de 1967), que subordinava a emissão de certificados de importação e de exportação à constituição de uma caução garantindo o cumprimento do compromisso de importar ou exportar dentro do prazo de validade desse certificado. Ora, o órgão de reenvio, o Tribunal Administrativo de Frankfurt, havia adiantado considerar tal regime comunitário, quanto aos elementos condicionadores da exportação (a obri- gatoriedade de prestação de caução), incompatível com os princípios gerais, consagrados na Lei Fundamental alemã, de liberdade de ação e da proporcionalidade na restrição de direitos. A posição assumida pelo Tribunal de Justiça em Internationale Handelsgesellschaft , na afirmação desse nível de entendimento do princípio do primado, articulou-se em torno de dois eixos argumentativos, sequen- cialmente expressos nos pontos 3. e 4. da fundamentação do acórdão: “[…] 3. O recurso às regras ou noções jurídicas do direito nacional, para a apreciação da validade dos atos adotados pelas instituições da Comunidade, teria por efeito pôr em causa a unidade e a eficácia do direito comunitário. Com efeito, ao direito emergente do Tratado, emanado de uma fonte autónoma, não podem, em virtude da sua natu- reza, ser opostas em juízo regras de direito nacional, quaisquer que sejam, sob pena de perder o seu caráter comunitário e de ser posta em causa a base jurídica da própria Comunidade; portanto, a invocação de violações, quer aos direitos fundamentais, tais como estes são enunciados na Constituição de um Estado-membro, quer aos princípios da estrutura constitucional nacional, não pode afetar a validade de um ato da Comunidade ou o seu efeito no território desse Estado. […]” (itálico acrescentado). A esta afirmação de princípio – que encerra a especificidade da projeção do entendimento anterior do Tribunal, no acórdão Costa c. ENEL , quanto ao sentido do primado relativamente às normas constitucionais dos Estados-membros (no caso, normas atinentes a direitos fundamentais) – seguiu-se a introdução pelo Tribunal de uma certa nuance , expressa no ponto 4. do acórdão, que viria a conferir à ideia de primado, quando situado neste plano, um contexto significativo muito particular, relacionado com a tutela dos direi- tos fundamentais no quadro da aplicação jurisdicional do DUE. Com efeito, referiu nessa ocasião o Tribunal de Justiça:
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