TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
627 acórdão n.º 422/20 por incumprimento, de situações particularmente expressivas, em que o Tribunal foi confrontado com a questão do incumprimento. Em todas essas ocasiões esteve (está) em causa, invariavelmente, um grau quali- tativamente superior de desconformidade ao comportamento devido, o qual é visto como expressão de um incumprimento estrutural dos valores da União em situações de grave desafio. Isso sucedeu, designadamente, no acórdão LM , de 25 de julho de 2018 (processo C-216/18 PPU) e, referindo-se especificamente a uma ação por incumprimento (artigo 258.º do TFUE), no acórdão Comissão Europeia c. República da Polónia , de 24 de junho de 2019 (processo C-619/18). Na primeira decisão ( LM ), aliás (vide os respetivos parágrafos 60 e 61, com correspondência no dispositivo), o conceito de “falhas sistémicas ou generalizadas”, por parte de um Estado-membro, referidas a valores centrais do DUE, como os expressos no artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), assume no seio do DUE, na caraterização do tribunal, o sentido de uma verdadeira exceção intrasistémica, apta a fornecer um fundamento contextual à inobser- vância de disposições deste [no caso focado no acórdão LM , as decorrentes da Decisão-Quadro 2002/584/ JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativas ao mandado de detenção europeu; no mesmo sentido, cfr. o acórdão Aranyosi e C ă ld ă raru , de 5 de abril de 2016 (processos C-404/15 e C-695/15 PPU), no pará- grafo 93 e na fórmula decisória, e o acórdão Dorobantu , de 15 de outubro de 2019 (processo C-128/18), nos parágrafos 50 e 54 e na fórmula decisória; note-se, confirmando esta asserção, que no acórdão AK , de 19 de novembro de 2019 (processos C-624/18 e C-625/18), chegou o TJUE à mesma ideia de falha sistémica, afirmando-a, todavia, por outras palavras, destacando a essência significativa do conceito, captada pela pers- petivação agregada de manifestações parcelares: “[…] embora um ou outro dos elementos assim destacados pelo referido órgão jurisdicional possa não ser criticável em si, sendo abrangido, neste caso, pela competência dos Estados-membros e pelas escolhas efetuadas por estes, a sua combinação, aliada às circunstâncias em que essas escolhas foram efetuadas, pode, em contrapartida, levar a que se duvide da independência de um órgão chamado a participar no processo de nomeação de juízes, apesar de, quando os referidos elementos são considerados separadamente, tal conclusão não se impor ” (itálicos acrescentados)]. 2.3.2.2.1. Tratou-se, pois, com a afirmação do primado referida ao DUE – e é o elemento que aqui importa reter –, de perspetivar (em termos distintos de uma situação de incumprimento) uma realidade muito particular, expressa na asserção, presente em Costa c. Enel , de que os Estados integrantes, ao insti- tuírem um quadro assente numa tão forte integração (ou ao aderirem a esse quadro) deram vida a uma realidade muito específica, distinta da usualmente decorrente dos tratados internacionais ordinários, pos- tulando esse caráter peculiar um tipo de primazia normativa diferente, porque baseado num instrumento qualitativamente diferenciado daqueles na sua intencionalidade. É assim, como refere Maria Luísa Duarte, que o Tribunal de Justiça “[…] justifica a obrigação de aplicar a norma comunitária, ainda que contrária à legislação interna posterior, com a ideia da autolimitação, fundamento do princípio contratualista. […] [O] primado é [,pois,] um produto de engenharia constitucional destinado a dar resposta adequada à exigência integracionista de limitações externas à soberania dos Estados” ( Direito Internacional Público, cit., p. 340). Em suma, estando em causa, com a criação da Comunidade Europeia, um modelo organizacional por- tador de uma identidade tão marcada, assente na criação de uma ordem jurídica autónoma e dotada de vida própria (produção legislativa própria), substancialmente diferenciada da dos Estados integrantes, envolvendo esse modelo, como destinatários diretos, os Estados e os seus nacionais – e tendo tudo isso sido criado e aceite pelos Estados-membros: “os Senhores dos Tratados” –, carece esse mesmo modelo de um mecanismo de efetiva projeção da sua intencionalidade global no confronto com a realidade parcelar, onde esta tenha sido objeto de uma legítima preclusão temática por banda daquela. 2.3.2.3. Não obstante esta caraterística vocacional do princípio do primado caracterizado em Costa c. Enel , a de atuar diretamente sobre o conflito normativo, resolvendo-o através da preeminência do DUE, distingue-se o mesmo das construções jurídicas típicas dos sistemas federais, assentes, com gradações diver- sas, no princípio da supremacia da ordem jurídica federal (vide o Artigo VI, Cláusula II, da Constituição dos
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