TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
624 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL com expressões (como primazia e preponderância) que de forma mais precisa captam o exato sentido da ideia pretendida afirmar: o DUE, no seu quadro de projeção direta nas ordens jurídicas do Estados-membros, pela sua própria essência e intencionalidade decorrente dos Tratados, sob pena de estiolar até à ineficácia total, carece de prevalecer sobre (de afastar, de passar à frente) o (do) Direito interno nas situações concorrenciais ou conflituais, não pode, enfim, no seu domínio temático próprio, ser suplantado pelo Direito interno, aplicando-se este em detrimento dele. Ou seja, o conflito criado a esse nível entre normas internas e o DUE é gerado por um concurso efetivo de normas válidas (válidas nos seus próprios termos para o seu domínio próprio), correspondendo essencialmente a um concurso aparente, cuja antinomia é ultrapassada com base num critério de especialidade, que o princípio do primado manda resolver pela aplicação da norma europeia. Daí que o Tribunal de Justiça em Costa c. Enel “[…] tenha atuado mais como Pigmalião que como Demiurgo […]” (Amedeo Arena, The Twin Doctrines of Primacy… , cit., p. 311), adaptando criativamente, em função da expectativa do resultado idealizado, a especificidade do DUE a mecanismos próprios do Direito Internacional: os princípios pacta sunt servanda e da irrelevância do Direito interno enquanto justifi- cação do incumprimento dos tratados, ambos codificados na Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tra- tados, assinada em 23 de maio de 1969 [respetivamente nos artigos 26.º (“[t]odo o tratado em vigor vincula as Partes e deve ser por elas cumprido de boa fé”) e 27.º(“[u]ma Parte não pode invocar as disposições do seu direito interno para justificar o incumprimento de um tratado.[…]”)]. Tratou-se, pois – já que estava em causa (com o Tratado CEE) uma realidade diversa dos tratados inter- nacionais ordinários, como referiu o Tribunal em Costa c. Enel –, de adaptar a essência significativa destes princípios de Direito Internacional a um quadro de possível concorrência conflitual do DUE (entendido como projeção dos Tratados) com o Direito interno dos Estados-membros, introduzindo um elemento de resolução direta desse conflito – uma regra de decisão, um critério de resolução de uma antinomia, de apli- cação imediata –, sendo certo que a forte individualidade do modelo organizacional emergente do Tratado CEE (e foi esse o modelo eleito pelos Estados integrantes no ato fundacional da Comunidade) postulava uma resposta que, não deixando de (também) ser dedutível desses princípios de Direito Internacional, teria de ser substancialmente distinta da simples (e clássica nesse âmbito específico) responsabilização do Estado incumpridor. Teria, esse novo modelo, de captar, afirmar e fazer atuar num plano imediato, sem dependên- cia de um arrastado procedimento reintegrador, a forte individualidade da realidade instituída por aqueles instrumentos, propiciando uma defesa, imediatamente atuante, da efetividade de uma ordem jurídica autó- noma, identitariamente vocacionada a suplantar, nos seus domínios específicos de incidência, manifestações antagónicas provenientes das ordens jurídicas dos Estados-membros. Assim sendo, as respostas ao incumprimento dos Tratados próprias do Direito Internacional Público, designadamente, os mecanismos de autotutela usuais nesse domínio – “reciprocidade no incumprimento”, “retaliação”, “contramedidas”, “suspensão de concessões equivalentes” (o chamado sistema GATT), “suspen- são de direitos inerentes à qualidade de membro”, etc. –, prefiguravam-se como insuficientes ou, pura e sim- plesmente, inadequados. O Tribunal de Justiça cedo afirmou essa inadequação – perspetivando o eclodir de fenómenos de incumprimento retaliatório, quid pro quo , do DUE pelos Estados-membros – no acórdão de 13 de novembro de 1964, proferido nos processos 90 e 91/63 ( Comissão da Comunidade Económica Europeia c. Grão-Ducado do Luxemburgo ): “[…] o sistema do Tratado pressupõe a proibição da prática pelos Estados- -membros da autotutela jurídica […]”. Em abono desta asserção, vale, além do mais, a evidência do efeito desagregador da Comunidade que a dinâmica própria desse tipo de respostas de autotutela induziria. Aliás, não corresponderiam sequer a uma resposta plenamente eficaz à multiplicidade de eventos gerados num quadro de interação contínua entre ordens jurídicas, mecanismos adjetivos de óbvia atuação retardada e con- tingente, como os decorrentes do processo por incumprimento, que correspondia, em rigor, ao único meio previsto no Tratado de Roma, desde o início da Comunidade Económica Europeia, de reação ao incumpri- mento do DUE pelos Estados. Veja-se, correspondendo ao modelo que vigorava ao tempo da decisão Costa c. Enel , a versão original constante dos artigos 169.º a 171.º do Tratado CEE, contendo esse procedimento de incumprimento, sublinhando-se, nesse enquadramento temporal, a não previsão de qualquer sanção
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