TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
623 acórdão n.º 422/20 As obrigações assumidas no tratado que institui a Comunidade não seriam absolutas, mas apenas eventuais, se pudessem ser postas em causa por posteriores atos legislativos dos Estados signatários. […]”. Nessa decisão, mais do que a afirmação do primado, que, em rigor, já se encontrava presente em ante- riores pronunciamentos do Tribunal de Justiça [desde logo no acórdão Van Gend en Loos e, antes ainda, nos acórdãos Humblet c. Bélgica (1960) e Comissão c. Itália (1962), cfr. Amedeo Arena, “The Twin Doctrines of Primacy and Pre-Emption”, in Oxford Principles of European Union Law , cit., pp. 302/303], encontramos na decisão Costa, no que porventura constituiu o dado mais relevante por ela projetado, a fundamentação do princípio do primado assente numa interpretação caracteristicamente teleológica, referida à intenciona- lidade presente na criação de uma Comunidade com as peculiares características da CEE (como então era designada): de duração ilimitada e dotada de uma ordem jurídica própria, logo projetada nas ordens jurídicas nacionais em função da pertença a essa Comunidade. 2.3.2.1. Destaca-se, assim, neste pronunciamento do Tribunal de Justiça, como refere Maria Luísa Duarte, a “[…] fundamentação [das] razões teóricas do primado” [ União Europeia e Direitos Fundamentais – No Espaço da Internormatividade, Lisboa, 2006 (reimpressão de 2013), p. 316], das quais não resulta, todavia – é importante sublinhá-lo –, uma construção hierarquizada da relação do DUE com os diversos Direitos nacionais, assente na afirmação de uma superioridade intrínseca daquele face a estes. Com efeito, o que avulta em tal construção é antes um somatório de razões de cariz prático ligadas à efetividade do instrumento agregador – o DUE – da realidade jurídica autónoma criada pelos Tratados – a Comunidade Europeia. Com efeito, porque o primado (a prevalência normativa que através dele se expressa, qual regra de decisão destinada a atuar numa relação concorrencial ou conflitual de normas) se justifica como instrumento colocado ao serviço de uma funcionalidade organizacional complexa, quanto o é a ordem jurídica europeia – complexidade que necessita desse mecanismo para adquirir um sentido atuante global num espaço formado por ordens jurídicas díspares, que necessariamente interagem com esse espaço, gerando um ambiente pro- pício ao surgimento de situações conflituais –, vale o primado (esgota-se ele, por assim dizer, simplificando algo as coisas) pelo efeito (pelo resultado) através dele pretendido alcançar, sem necessidade de lhe conferir uma (ou de o deduzir a partir de uma) fundamentação – digamo-lo assim – transcendental, ou mesmo de o posicionar, num quadro descritivo caracteristicamente monista, numa hierarquia de tipo vertical. É que o primado, o princípio construído pelo Tribunal de Justiça nos anos sessenta do século XX, mesmo nas suas projeções posteriores, designadamente no acórdão Internationale Handelsgesellschaft (1970) ao qual adiante nos referiremos com maior detalhe, não obstante ser por vezes identificado recorrendo ao substantivo supe- rioridade (referido ao DUE na sua relação com os Direitos nacionais), no que expressa um viés semântico menos preciso, “[…] não [pressupõe] uma relação típica de infra e supraordenação entre normas [, não valendo] como exigência de prevalência hierárquica [: a] norma eurocomunitária prevalece sobre a norma interna não porque lhe seja superior, mas porque é materialmente competente para regular o litígio concreto. […] [A] relação entre o Direito da União Europeia e os Direitos dos Estados-membros constrói-se com base no princípio da competência atribuída e por referência ao princípio da colaboração ou da complementari- dade funcional entre ordenamentos autónomos” (Maria Luísa Duarte, Direito Internacional Público e ordem jurídica global do século XXI , 2.ª reimpressão, Lisboa, 2019, p. 339). Aliás, a expressão superioridade, sendo dedutível do substantivo preeminência, que foi o efetivamente empregue pelo Tribunal de Justiça no acórdão Costa c. Enel [ preminenza em italiano, a língua do processo: “[ l]a preminenza del diritto comunitario trova con- ferma […]”; precedence , na versão inglesa; prééminence , em francês, a expressão presumivelmente escolhida pelo relator, Robert Lecourt: “[…] attendu que la prééminence du droit communautaire est confirmée […]”; primacía , em espanhol; Vorrang , em alemão; primado, na tradução portuguesa], sintomaticamente não cor- respondeu (a palavra superioridade, ou mesmo a palavra supremacia) ao substantivo eleito para identificar a ideia pretendida afirmar, valendo em preeminência a sinonímia, comum às diversas línguas consideradas,
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