TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
620 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL A esta jurisprudência de afirmação da identidade própria do DUE há que referir, sem dúvida alguma, a fixação dos princípios estruturantes deste – o efeito direto e o primado – que possibilitaram, nas palavras de Sofia Oliveira Pais, “[…] o nascimento de uma ordem jurídica nova, distinta da dos Estados-membros, dotada de autonomia e características próprias” [ Princípios Fundamentais de Direito da União Europeia. Uma aborda- gem jurisprudencial, Sofia Oliveira Pais (coord.), reimpressão da 3.ª edição, Coimbra, 2018, p. 9]. De facto, “[…] o caráter intencionalmente vago dos Tratados e a relativa rigidez das regras de revisão, ligados à natureza intrinsecamente evolutiva do processo de integração europeia, levaram o Tribunal a interpretar, desenvolver e aprofundar os Tratados e, desse modo, contribuir de forma decisiva para a elaboração e sedimentação progressi- vas da Ordem Jurídica das Comunidades Europeias e, posteriormente, da União Europeia. Bom exemplo disso é o facto de princípios fundamentais do Direito da União Europeia serem de criação pretoriana” (Ana Maria Guerra Martins, Manual de Direito da União Europeia , Coimbra, 2012, pp. 485/486), refletindo – nas palavras de Koen Lenaerts – a resposta do Tribunal de Justiça a um problema que o interpelou desde os primórdios da sua atividade: “[…] no começo do processo de integração europeia, o TJ foi confrontado com a seguinte questão: embora a versão original do Tratado CEE prescrevesse ao Tribunal ‘garantir o respeito do Direito na interpretação e aplicação dos Tratados’ [artigo 164.º do Tratado de Roma; atualmente com correspondência no artigo 19.º, n.º 1, do TUE], não forneciam estes qualquer definição do que constituía ‘Direito’. Assim, para dar cumprimento a tal comando constitucional de sentido autorreferente e, por isso, pressupondo a existência de uma ordem jurídica autónoma, o Tribunal Europeu de Justiça não se podia limitar a uma compreensão for- malista da ideia de «juridicidade» [ rule of law ]. Assim, não lhe restava outra opção que não fosse a de integrar a lacuna constitucional deixada pelos autores dos Tratados.” [“The Court’s Outer and Inner Selves: Exploring the External and Internal Legitimacy of the European Court of Justice”, in Judging Europe’s Judges. The Legitimacy of the Case Law of the European Court of Justice , (edts. Maurice Adams, Henri de Waele, Johan Meeusen, Gert Straetmans), Hart Publishing, Oxford, 2015, p.15]. Se assim não fosse – se assim não tivesse ocorrido – é fácil perceber quão diferente seria o processo de construção europeia, permanentemente colocado em crise pela subalternização da sua base de edificação – o seu próprio Direito – face à afirmação das diversas idiossincrasias e particularismos regionais, feitos atuar, nas diversas áreas comunitarizadas, através da constante sobreposição (fosse por superiorização, fosse por parificação) dos Direitos nacionais ao DUE. Foi a compreensão do efeito desagregador deste fenómeno por parte do TJUE, “[d]esde uma fase ini- cial […]” da sua atividade, que o conduziu a assumir o papel de “[…] expoente dos alicerces normativos da integração […]”. De facto, “[estabelecendo] o efeito direto, o Tribunal essencialmente aboliu o monopólio do Estado na concessão de direitos, assim criando uma forma nascente de cidadania supranacional. Os julga- mentos [situados numa fase inicial da atividade do Tribunal] em Van Gend en Loos , Costa v. Enel e Internatio- nale Handelsgesellschaft , deram origem a um processo de constitucionalização dos Tratados, que contou com a cooperação, ou pelo menos a tolerância, quando não a aquiescência, dos tribunais nacionais dos Estados- -membros e das instituições políticas da União Europeia, fortalecendo o Tribunal de Justiça, permitindo-lhe assumir o papel de Tribunal Supremo da União” [Takis Tridimas, “The Court Of Justice Of The European Union”, in Oxford Principles Of European Union Law, Vol. I ( The European Union Legal Order ), Robert Schütze, Takis Tridimas (eds.), Oxford University Press, Oxford, 2018, p. 582]. 2.3.1.2. Note-se que o mesmo efeito de relativização da eficácia do DUE – maxime , de enfraquecimento da própria União – não deixaria de decorrer do posicionamento deste em plano de paridade com o Direito ordinário dos Estados-membros. Em tal caso, uma lei nacional contraditória com o DUE prevaleceria sobre este – poderia, em última análise, prevalecer à luz do critério cronológico de sucessão de leis: lex posteriori derogat legi priori –, colocando-o, na sua efetividade em cada Estado, à mercê dos impulsos circunstanciais do legislador nacional. Basta recordar, como exemplo vivo desta afirmação, o trecho jurisprudencial que, no
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