TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
618 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL norma de competência, projeta, todavia, em termos consequencialmente bem diferenciados, espaços de alcance jurisdicional referidos à intervenção deste Tribunal, no sentido de gerarem, em função do seu distinto posicionamento no seio da norma em causa, decisões de conhecimento ou de não conhecimento do recurso derivadas de âmbitos de competência diferenciados que nela coexistem. 2.3.1. A discussão substancial implícita no artigo 8.º, n.º 4, da CRP gira, fundamentalmente, em torno do reflexo nas jurisdições dos Estados-membros de duas construções jurídicas há largos anos erigidas em princípios identitários do Direito Comunitário (do DUE, na terminologia decorrente do Tratado de Lisboa, que doravante empregaremos) pela jurisprudência do TJUE: o princípio do efeito direto e o princípio da primazia ou do primado do DUE sobre o Direito dos Estados-membros, apresentando este último uma mais direta incidência na temática do presente recurso. Em qualquer dos casos estamos perante construções jurisprudenciais – na sua origem e em termos clara- mente expressos, o efeito direto através do acórdão Van Gend en Loos , de 5 de fevereiro de 1963 (processo n.º 26/62) e o primado por via do acórdão Costa c. ENEL , de 15 de julho de 1964 (processo n.º 6/64) – relati- vamente às quais os Tratados permanecem omissos, tendo falhado o que se pode descrever como a tentativa de “codificar” o princípio do primado através de um texto reformando os Tratados que assumiria, no quadro das fontes de DUE, a natureza de uma Constituição (corresponderia ao que se designou então como a Cons- tituição Europeia). Essa tentativa foi empreendida através do “Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa”, correntemente referido como Tratado Constitucional, assinado em 29 de outubro de 2004, cujo processo de implementação viria, todavia, a soçobrar. Ora, o texto constitucional projetado nesse contexto previa, no respetivo artigo I-6.º respeitante ao “Direito da União”, a primazia da Constituição Europeia e do direito adotado pelas instituições da União “[…] sobre o direito dos Estados-membros”. Como é sabido, a frustração do processo de aprovação desse Tratado, diretamente decorrente do voto negativo nos referendos realizados em França (29 de maio de 2005) e na Holanda (1 de junho de 2005), criou um impasse no percurso que havia sido iniciado no Conselho Europeu de Laeken (de 14 e 15 de dezembro de 2001), no qual se adotara a decisão de restruturar os Tratados, lançando, através da realização de uma Convenção para o Futuro da União, um processo constituinte que era suposto conduzir à aprovação e entrada em vigor do texto da Constituição Europeia. Da frustração desse propósito, já na sua fase final de concretização, resultou a abertura de um outro processo de reforma dos Tratados (decisão adotada em junho de 2007 durante a presidência alemã) que conduziria à adoção do Tratado de Lisboa, assinado em 13 de dezembro de 2007, a culminar a presidência portuguesa, e que entrou em vigor em 1 de dezembro de 2009. Foi este instrumento de reforma entendido como “solução de compromisso” de reforma dos Tratados, fora do quadro da criação de um texto com a natureza e a terminologia próprias de uma Constituição [Jónatas E. M. Machado, Direito da União Europeia, 3.ª edição, Coimbra, 2019, p. 31; este processo é desenvolvi- damente descrito na Sentença de 30/06/2009 do Tribunal Constitucional alemão, respeitante ao Tratado de Lisboa ( BVerfG , 2 BvE 2/08), cfr., em especial, os parágrafos 2 a 33]. O Tratado de Lisboa, como que “regressando” ao status quo original da questão do primado, manteve o princípio fora do texto dos Tratados, referenciado, como até então sucedia – e, portanto, continuou a suceder, expressando o estado atual da questão –, à projeção do sentido decorrente do importantíssimo desenvolvimento jurisprudencial de cariz identitário do DUE, estabelecido, no início dos anos sessenta do século passado, através do acórdão Costa c. ENEL , cujo sentido foi sempre reafirmado e reforçado ao longo dos anos pelo TJUE. 2.3.1.1. Não constituindo a jurisprudência fonte formal de Direito da União Europeia (cfr. o primeiro parágrafo do artigo 288.º do TFUE, que elenca os atos jurídicos da União: regulamentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres), a presença e a projeção, através dos acórdãos Van Gend en Loos e Costa c. ENEL (e adiante referiremos outras decisões que partilham esta natureza sui generis ), de uma forte expressividade identitária do DUE, conferiu uma peculiar base afirmativa criadora a estas situações de desenvolvimento
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