TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020

426 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Por conseguinte, o n.º 5 do artigo 93.º do CIEC contempla duas hipóteses de irregularidade manifestamente distintas. Na hipótese de venda a comprador que não apresenta o cartão de microcircuito, inexiste a mínima evidência de o consumidor do gasóleo colorido e marcado ser titular do direito ao benefício fiscal; assim, pode presumir-se a utilização abusiva do regime da venda do gasóleo colorido e marcado, porque não há indício algum de o comprador ser beneficiário. Na hipótese de venda a quem apresenta o referido cartão, não sendo registado na fatura o nome do respetivo titular, inexiste a mínima evidência de o portador não ser titular do direito; assim, não pode presumir-se a utilização abusiva do regime, porque a apresentação do cartão constitui o indício legal de o comprador ser beneficiário. Neste último caso, não se pode presumir terem sido violadas as condições de acesso ao benefício fiscal, porque a emissão da fatura em nome do titular do cartão não contribui para robustecer a inferência de titularidade do benefício fiscal relativamente ao ato de apresentação do cartão. Por outras palavras, a mera emissão da fatura não contribui para «assegurar que aquela venda foi feita ao titular daquele cartão», inviabilizando o juízo de que a omis- são de tal formalidade é razão suficiente para se presumir a lesão do erário público. Se é certo que a apresentação do cartão está longe de ser uma forma infalível de verificação da titularidade do benefício fiscal, não se vislumbra de que modo é que a mera emissão da fatura em nome do titular do cartão reforça a convicção na regularidade da transação. 11. Não se contesta que a emissão da fatura constitui uma obrigação destinada a facilitar o posterior controlo administrativo da regularidade das transações sobre gasóleo colorido e marcado. O que se contesta é que a omissão dessa formalidade constitui por si própria justificação para se presumir um dano fiscal que se impõe ressarcir. A responsabilidade pelo pagamento da diferença revela-se, deste modo, não como uma obrigação fiscal, mas como a sanção cominada pelo incumprimento de uma obrigação acessória; a sua natureza é sancionatória. Ao exigir ao proprietário ou responsável legal pela exploração dos postos de combustível, em consequência do incumprimento desta obrigação, que pague o imposto que seria devido se o gasóleo colorido e marcado fosse vendido a quem razoavelmente se presume não beneficiar do direito a adquiri-lo, o legislador impõe uma ablação patrimonial que agrava os custos suportados com o exercício da atividade económica. A norma sindicada consubstancia, deste modo, uma restrição à liberdade de iniciativa económica consagrada no n.º 1 do artigo 61.º da Constituição, a respeito da qual pode ler-se no Acórdão n.º 545/14: «É consensual na doutrina e na jurisprudência constitucional que o direito de livre iniciativa económica, apesar de sistematicamente inserido no Título III da Parte I, respeitante aos direitos, deveres económicos, sociais e culturais, tem uma certa dimensão de liberdade radicada na dignidade da pessoa humana que justifica a sua qualificação como direito, liberdade e garantia de natureza análoga. Essa dimensão subjetiva, que é reflexo do direito geral de personalidade na atividade de produção e distribuição de bens e serviços, expresso nos prin- cípios da autonomia da vontade e da liberdade contratual, ainda mais se acentuou com a revisão constitucional de 1997, quando aquele direito subjetivo foi autonomizado da garantia institucional da livre iniciativa econó- mica prevista na alínea c) do artigo 80.º O reconhecimento de que certas vertentes do direito de iniciativa económica privada têm analogia com os direitos, liberdades e garantias enunciados no Titulo II implica que, por força da norma do artigo 17.º da CRP, lhes sejam aplicadas as disposições constitucionais que se referem a esses direitos.  (…) Neste preceito, a Constituição deixa ao legislador uma ampla margem de liberdade na delimitação e configuração do direito de livre iniciativa económica. O direito está consagrado como um direito de defesa contra o Estado, na medida em que pode ser exercido «livremente», mas esse exercício só se pode efetuar «nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral», abrindo-se assim espaço para uma maior ou menor limitação ou restrição legal do direito fundamental. (…) As limitações ou restrições à liberdade de empresa, nela incluída a liberdade de concorrência, devem ser jus- tificadas à luz do princípio da proibição do excesso (n.º 2 do artigo 18.º da CRP): respeitado o “núcleo essen- cial” da liberdade de empresa, qualquer restrição não pode ir além do estritamente adequado ou necessário.»

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