TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020

394 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL exige que cada notário pague por cada escritura € 10, e por cada demais ato que pratique € 3. Inscrevendo-se a prática de tais atos no âmago das funções notariais, o tributo devido será tanto mais elevado quanto mais intenso for o volume de negócios que o Notário, oficial público, mas também profissional independente, a seu cargo tiver. Também por este motivo, fica por demonstrar a disparidade existente entre o montante devido a título de taxa e a capacidade contributiva de cada profissional do notariado, uma vez que o tributo devido crescerá, em montante, à medida que for crescendo, em intensidade, a atividade liberal desempenhada. 8. Resta finalmente responder à alegação, também apresentada pelos recorrentes, segundo a qual a norma impugnada seria inconstitucional por violar o princípio da proteção da confiança, decorrente do artigo 2.º da CRP. Como atrás se relatou, esta alegação sustentam-na os recorrentes na aplicação, ao caso, do modelo de «testes» que a jurisprudência constitucional tem vindo a utilizar para concluir se, face a certa norma infraconstitucional, ocorre ou não lesão da confiança legítima que os particulares depositavam na manutenção de um certo quadro jurídico que lhes fosse aplicável, ou na continuidade das soluções encontradas pelo legislador na conformação de direitos de que fossem titulares. Baseados neste modelo de «testes», concluem os mesmos recorrentes que, in casu : (i) o legislador manteve, com perspetivas de continuidade, a política de gratuitidade do acesso aos serviços públicos em causa por parte de diversos grupos de profissionais e dos demais cidadãos; (ii) os profissionais do notariado tinham boas e legítimas razões para crer que tal política de gratuitidade se viria a manter, no futuro, de forma universal, isto é, de forma a abranger todos os grupos sociais incluindo o dos Notários; (iii) os profissionais do notariado teceram planos de vida contando com a universalidade de tal política; (iv) não se vê que razões de interesse público podem justificar, em ponderação, a rutura existente na continuidade de tal «comportamento» legislativo, rutura essa que se traduz na imposição, só ao grupo dos notários, de uma «taxa» a pagar para o acesso a serviços que, antes, eram gratuitos. Deve, no entanto, dizer-se que à aplicação ao caso deste «modelo de testes», assim feita pelos recorrentes, falta um pressuposto essencial. O contexto em que o Tribunal afere da lesão ou não lesão do princípio da proteção da confiança inscreve-se sempre – como decorre de toda a jurisprudência que sobre a interpretação deste princípio constitucional se debruça, de tal ordem numerosa e conhecida que não vale a pena agora repetir a sua invocação – nos limites à auto- revisibilidade dos atos normativos estaduais. Como se sabe, e como constantemente a jurisprudência tem repetido, a função estadual de normação (através de atos legislativos ou através de atos regulamentares) é exercida por intermédio de competências, constitucio- nalmente fixadas, mas que trazem inscritas no seu âmago a não apenas possível, mas por vezes necessária, revisão do sentido de atos pela mesma função no passado praticados. Ao poder normativo do Estado pede – e por vezes exige – a Constituição que acompanhe o devir histórico, mudando em adequação a ele o sentido antes impresso à regulação das relações sociais. É certo que esta característica estrutural que a função normativa do Estado detém – e que se traduz no poder de rever livremente o sentido dos atos antes praticados – está naturalmente sujeita aos limi- tes que a própria Constituição fixa. Assim, alterações legislativas que contendam com normas constitucionais que consagrem direitos fundamentais, ou que contrariem regras de repartição de competências, constitucionalmente fixadas, entre os diferentes órgãos «legiferantes», não serão naturalmente alterações legítimas, que o princípio da autorrevisibilidade possa em si mesmo justificar; como não serão legítimas, por exemplo, aquelas alterações legisla- tivas cujos efeitos se pretendam, de forma intolerável, fazer repercutir sobre o passado. Fora destas circunstâncias, porém, a regra é a da autorrevisibilidade do sentido das normas emitidas pelos órgãos constitucionais competentes; no contexto da qual não tem aplicação o princípio da proteção da confiança.  Ora, no caso, do que se trata é precisamente do exercício comum deste poder de «autorrevisbilidade» do sen- tido de atos estaduais anteriormente praticados, poder esse exercido quer pelo legislador, através da definição de um novo regime jurídico a aplicar aos profissionais de notariado, quer pela normação administrativa, através da emissão de um regulamento que visava a concretização do novo regime legislativo. Na verdade, e na sequência do novo Estatuto do Notariado – onde o legislador, em reforma profunda, prevê que, para o futuro, a profissão de notário terá a componente privada, independente ou liberal que antes lhe era desconhecida – a norma impugnada apenas estipula que seja pelos novos profissionais devida uma taxa pela utilização de serviços públicos que lhes são especialmente dirigidos (que esta última decisão do «legislador» tenha vindo a ser, posteriormente, revogada,

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=