TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020

308 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL por identidade de razões, para o corolário in dubio pro reo – emergiu como um princípio, poderíamos mesmo dizer uma “instituição”, do processo penal. Constituindo-se como uma das traves-mestras do processo penal acusatório do Estado de direito. Trata-se outrossim de um princípio que esgota a sua densidade axiológica, a sua intencionalidade teleológica bem como as suas específicas vigência e relevância no sistema processual penal. Não podendo as pertinentes valorações processuais-penais nem as correspondentes projeções pragmáticas (de censura, estigma, perigosidade, etc.) renovarem-se e prolongarem-se no contexto de outros ramos do ordena- mento jurídico. Brevitatis causa : uma pessoa absolvida em processo penal é, para todos os efeitos e em todos os lugares do direito, uma pessoa criminalmente inocente. Isto qualquer que seja o fundamento da sua absolvição: ausência dos momentos (objetivos ou subjetivos) do comportamento típico, justificação do facto, persistência de dúvida atinente aos momentos do tipo-incriminador ou do tipo-justificador ( in dubio pro reo ), etc. Só que, como “instituição” do processo criminal, não pode impor-se aos demais ramos do direito, no sen- tido de pré-determinar juízos, valorações e consequências pragmáticas próprias destes outros ramos de direito. E que só a eles cabe encontrar. Até porque se trata de ramos de direito que obedecem a racionalidades e códigos próprios e se inscrevem em horizontes axiológico-normativos distintos, por vezes mesmo antinómicos. Tal vale sobremaneira e de forma paradigmática para os pertinentes regimes probatórios. Sabe-se como, diferente- mente do processo penal, o processo civil assenta no princípio da autorresponsabilidade probatória das partes e conhece um regime de proibições de prova não sobreponível ao do processo penal. Estão em causa sistemas normativos diferentes, vocacionados para interpretarem e julgarem em termos assimétricos os mesmos “pedaços de vida” sobre que venham a convergir. Por ser assim, factos que é forçoso dar como não provados em processo penal e tratá-los como se eles, pura e simplesmente, não existissem, podem perfeitamente ser dados como pro- vados noutros ramos de direito e aí valorados como cumprindo a fattispecie das pertinentes previsões legais. Só pode ser assim em homenagem à separação, autonomia e autorreferência da lei civil (substantiva ou adjetiva) ou outra, face ao desempenho do sistema penal (substantivo ou adjetivo). Decisiva e unívoca, apenas uma inultra- passável linha vermelha: estes outros ramos de direito não podem renovar, nem sequer pressupor e menos ainda erigir em pressuposto das suas decisões qualquer lastro ou resíduo de censura ou estigma criminal. Que a seu tempo foram definitiva e irreversivelmente afastados do mundo do direito e da vida. No caso em apreço, à invasão injustificada, por princípios e modos de ver do direito processual penal, do espaço e racionalidade próprios de outros ramos do direito, acresce a anomalia de o princípio da presunção de inocência irromper na ação extrapenal com um conteúdo e uma força muito mais intensos do que ocorria no processo criminal. É que, aqui, a sua projeção «intraprocessual» obrigava apenas a uma pronúncia favorá- vel ao arguido em caso de não superação de dúvida razoável quanto à prova dos factos. Aquele fica, assim e em absoluto, libertado do ónus da prova, mas sem que ao julgador seja vedada a apreciação plena do objeto do processo. Que, pelo contrário, se impunha. Já com a sua transposição para a ação ulterior, essa dimensão do princípio da presunção de inocência conhece uma mutação radical. Deixando de ser um princípio de dis- tribuição do ónus probatório e de definição do crivo de convicção. Antes passando a assumir a virtualidade de subtrair à apreciação do novo tribunal factos que, noutra sede e noutro tempo, constituíram objeto de um processo criminal. E, com isso, impondo, automática e ficcionalmente ao processo civil ou outros um caso julgado de inexistência de responsabilidade (civil ou outra), cujos pressupostos e fundamentos lhes cabe identificar e julgar com toda a autonomia. Todas estas considerações, a serem pertinentes, deixam sem alternativa uma conclusão: um tratamento diferenciado, do ponto de vista da indemnização, das duas constelações típicas – de um lado, absolvição por ausência de facto típico ou por exclusão da ilicitude; do outro, absolvição por atualização do princípio in dubio pro reo – pode ser julgado inconstitucional à luz de diferentes parâmetros, maxime do princípio de igualdade. Não, porém, por afronta ao princípio de presunção de inocência, cujo programa e área de tutela não cobrem esta matéria. – Manuel da Costa Andrade.

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