TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
298 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL culpabilidade, acabou por ser reconhecido nos sistemas jurídicos de diversos países e consagrado em instru- mentos de direito internacional (cfr. o artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; o artigo 6.º, § 2, da CEDH; o artigo 14.º, n.º 2, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; e o artigo 48.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia). Hoje está fundamentalmente em causa o reconhecimento do valor ético próprio de cada ser humano, daí resultando consequências para toda a estrutura do processo penal, «que, assim, há de assentar na ideia-força de que o processo deve assegurar todas as necessárias garantias práticas de defesa do inocente e não há razão para não considerar inocente quem não foi ainda solene e publicamente julgado culpado por sentença transitada em julgado» (vide Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit. , anotação X ao art. 32.º, pp. 722-723). Tal princípio encontra-se consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, no qual se dispõe que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa»; e a jurisprudência deste Tribunal tem reconhecido ao mesmo um alcance conforme à citada ideia-força (vide, entre os mais recentes, os Acórdãos n. os 391/15, 62/16, 101/16, 674/16, 195/17, 173/18 e 74/19). No entanto, além da projeção intraprocessual e interprocessual daquele princípio, entendido como norma de tratamento (vide o mencionado Acórdão n.º 173/18, n.º 7), cumpre considerar igualmente a sua necessária vertente extraprocessual. Com efeito, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (“TEDH”) tem vindo a afirmar, em jurispru- dência constante, que, por razões ligadas à respetiva efetividade, a presunção de inocência prevista no artigo 6.º, § 2, da CEDH proíbe as autoridades públicas ou seus agentes de tratarem como se fosse culpado ou suspeito da prática de um crime o arguido em anterior processo criminal já concluído, mas em que, por qualquer razão, incluindo a absolvição, o mesmo não tenha sido condenado. Ora, reiterando o entendimento afirmado, por exemplo, no Acórdão n.º 464/19 [vide o n.º 6, alínea c) , ii. ], o « standard mínimo de proteção dos direitos fundamentais é o consagrado nas normas da CEDH, interpretadas de acordo com a jurisprudência do TEDH. A jurisprudência do TEDH deve ser considerada pelo Tribunal Constitucional nas suas decisões como critério coadjuvante na interpretação das normas cons- titucionais, atendendo, nomeadamente, aos juízos de ponderação no contexto da aplicação do princípio da proporcionalidade e à densificação do conteúdo dos direitos fundamentais, sobretudo quando estão em causa novos direitos ou novas dimensões de direitos preexistentes. Por força da cláusula aberta no domínio dos direitos fundamentais consagrada no artigo 16.º da Constituição, este Tribunal não pode, na verdade, deixar de considerar os direitos fundamentais consagrados na referida Convenção, devendo igualmente ter em conta a interpretação que dos mesmos tem vindo a ser feita pelo TEDH». Isto, naturalmente, sem prejuízo de se continuar a entender, como no Acórdão n.º 121/10, que a aber- tura constitucional em matéria de direitos fundamentais tem o sentido «de alargar a cobertura constitucional dos direitos fundamentais e não o de a restringir ou limitar, extensiva ou intensivamente. Vale por dizer que o n.º 2 do artigo 16.º da Constituição funciona apenas do “lado” jurídico-individual dos direitos fundamen- tais e quando não conduza a uma solução menos favorável aos direitos fundamentais do que a interpretação “endógena” da Constituição. Deve intervir aqui o princípio da preferência de aplicação das normas consagra- doras de um nível de proteção mais elevado , à semelhança do que prescrevem os artigos 52.º, n.º 3, e 53.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. , p. 368)» (n.º 21; itálico acrescentado). Cumpre, deste modo, incorporar na apreciação da norma sindicada à luz do artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, a jurisprudência do TEDH relativa ao preceito homólogo da CEDH (o artigo 6.º, § 2: «qualquer pessoa acusada de uma infração presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada»). 20. Na verdade, o TEDH tem entendido que, para assegurar que o direito consagrado no artigo 6.º, § 2, da Convenção seja concreto e efetivo, a presunção de inocência reveste necessariamente uma segunda dimen- são, que vai além da sua relevância enquanto garantia processual. O Tribunal Pleno (a Grande Chambre ou
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