TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020

292 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL privação da liberdade foi “correta”, no sentido de não ter sido ilegal nem viciada nos respetivos pressupostos de facto (ou, como acima se referiu, “regular”; cfr. supra o n.º 11). E, sendo “correta” naquele sentido, tal privação da liberdade não é contrária à Constituição nem contrária à lei (nem, tão pouco, à CEDH). A solução em apreço significa que o legislador ordinário decidiu agora impor ao Estado, e já não ao cidadão, o risco do erro, revelado posteriormente nos termos daquela norma da alínea c) do artigo 225.º, n.º 1, do CPP, sobre a justificação da privação da liberdade. Ao fazê-lo, porém, o legislador não está a cumprir qualquer injunção constitucional decorrente do artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, pois, como reconhecido pela jurisprudência deste Tribunal, tal preceito não o impõe (cfr. supra o n.º 10). O que está em causa é a repartição solidária do sacrifício imposto para salvaguarda de bens fundamentais como a eficácia da justiça penal, a segurança e a liberdade individual dos demais membros da comunidade, atribuindo uma indemnização ao indivíduo que esteve sujeito a prisão preventiva devido a um juízo provisó- rio de culpabilidade, mas que, ex post , e por via da comprovação da sua inocência, não se confirma. A opção do legislador de 2007 significa que o risco associado àquele juízo – o qual, como mencionado, se reconduz a uma prognose que, mesmo sendo efetuada corretamente, pode não se confirmar no futuro – não deve correr exclusivamente por conta do indivíduo privado da liberdade a título cautelar, mas ser repartido por todos os membros da comunidade (enquanto dever estadual de indemnizar), uma vez e na medida em que são eles os beneficiários (a respetiva segurança e liberdade constituem a causa final) do sacrifício imposto àquele. Por outras palavras: uma vez que a privação da liberdade a título cautelar se veio a revelar materialmente injustificada, é justo que o dano sofrido pelo indivíduo e a ele imposto para salvaguarda de bens que a todos interessam, não o onere exclusivamente e seja igualmente compensado por todos. Trata-se de um problema de justiça nas relações entre os cidadãos e o Estado com conexões evidentes à exigência de igualdade perante os encargos públicos, que extravasa o preceito constitucional relativo à indemnização dos danos causados pela «privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei» (itálico acrescentado). Com efeito, «princípio fundamental da vida em sociedade, a preeminência do interesse público legitima o sacrifício dos bens particulares à prossecução do escopo coletivo. Mas se é a generalidade dos cidadãos que vai beneficiar da medida lesiva do património privado [– mas, no mínimo por identidade de razão, o mesmo valerá para bens pessoais –], justo é que o dano inevitavelmente imposto para a satisfação da publica utilitas se reparta igualmente por todos» (assim, vide. Gomes Canotilho, O problema da responsabilidade civil do estado por actos lícitos, Almedina, Coimbra, 1974, pp. 29-30). Nesse sentido, são certeiras as observações feitas pela Conselheira Maria Fernanda Palma nas suas declarações juntas aos Acórdãos n. os 12/05 e 13/05: «A questão que este Tribunal, como intérprete dos valores constitucionais, cabe dilucidar é […] a de saber se os danos pelo risco de uma inutilidade da prisão preventiva revelada  ex post não devem ser suportados pelo Estado em vez de onerarem, exclusivamente, o arguido. Tal questão não é apenas atinente ao regime dos pressupostos da prisão preventiva e à sua legitimidade, mas antes um problema de justiça no relacionamento entre o Estado e os cidadãos, função de justiça que cabe ao Estado assegurar. Estamos, sem dúvida, perante um problema de ponderação de valores em que se questiona em que medida e com que consequências é que a privação da liberdade (em prisão preventiva) de quem veio a ser absolvido é justi- ficada pelo interesse geral em realizar a justiça e prevenir a criminalidade. Num outro modo de abordagem, a per- gunta fundamental será a de saber se é legítimo exigir-se, em absoluto e sem condições, a cada cidadão o sacrifício da sua liberdade em nome da necessidade de realizar a justiça penal, quando tal cidadão venha a ser absolvido. […] Não se tratará porém de um problema de verificação dos pressupostos ex ante  da prisão preventiva e de uma avaliação da sua justificação, mas sim, num plano objetivo (e necessariamente  ex post ), da contemplação da “vitimi- zação” do agente pelo próprio juízo de prognose correto realizado pelo órgão de justiça penal.

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