TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
286 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 3 do artigo 27.º da Constituição e o artigo 202.º, n.º 1, do CPP; vide também Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada , vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anotações V e VII ao artigo 27.º, pp. 480 e 481; e Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anotações XVI e XVIII ao artigo 27.º, pp. 647 e 648). Com efeito, a privação da liberdade de alguém suspeito de ter praticado um crime, mas que ainda não foi condenado – e que, portanto, não só pode não ter praticado tal crime, como se tem de presumir inocente (cfr. o artigo 32.º, n.º 2, da Constituição) – é expressamente admitida pela Constituição, ainda que a título excecional (cfr. o artigo 28.º, n.º 2). Ademais, o dano correspondente a tal privação de liberdade do inocente, prima facie , e de acordo com a própria Constituição, não tem de ser sempre indemnizável; tal dever indemnizatório só é constitucionalmente imposto nas circunstâncias previstas no respetivo artigo 27.º, n.º 5. A solução prevista em tal preceito corresponde, por conseguinte, a uma situação particular de responsa- bilidade civil do Estado por danos causados por decisões de juízes – a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei –, que não se confunde com a do clássico erro judiciário (cfr. o artigo 29.º, n.º 6, da Constituição e a ressalva constante do artigo 13.º, n.º 1, do RCEEP) e cujos contornos mais precisos devem ser definidos pelo legislador. Daqui resulta que a lei aprovada em vista do estabelecimento de tal compensa- ção ou indemnização não constitua, ela própria, uma restrição (constitucionalmente autorizada) do direito à liberdade. Aliás, a aplicação de tal lei até pressuporá normalmente a contrariedade com uma outra lei – jus- tamente aquela que define os termos em que a privação da liberdade é constitucionalmente legítima –, que, essa sim, reveste necessariamente um caráter restritivo daquele direito, nos termos do artigo 27.º, n.º 3, da Constituição. Recorde-se, por outro lado, que o direito de indemnização em razão de prisão ou detenção em condi- ções contrárias às exceções ao direito à liberdade também se encontra previsto no artigo 5.º, § 5, da CEDH. Mas tão-pouco este preceito estabelece uma correlação automática entre, por exemplo, a prisão fundada em «suspeita razoável de [alguém] ter cometido uma infração, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infração ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido» [cfr. a alínea c) do § 1 do mesmo artigo] e a posterior absolvição. Também, neste caso, o direito de indemnização só é reconhecido à «pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo» (itálico acrescentado). Ou seja, tanto o artigo 27.º, n.º 3, alínea b) , da Constituição como o artigo 5.º, § 1, alínea c) , da CEDH admitem – e, por conseguinte, permitem – que, não obstante o reconhecimento do direito à liber- dade e do direito à presunção de inocência, as pessoas possam em determinadas circunstâncias ser privadas da liberdade. Tal permissão, a concretizar necessariamente numa lei restritiva, justifica-se pela necessidade de acautelar outros valores fundamentais, como os da eficácia da justiça penal, da segurança e da própria liberdade dos demais membros da comunidade (cfr. o Acórdão n.º 185/10, n.º 4.2, acessível, assim como os demais adiante referidos, a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ ). Mas a mesma permissão coenvolve o risco de se vir a concluir ex post , na sequência de um juízo absolutório (mas também, embora tais hipóteses não relevem para o caso dos presentes autos, de um arquivamento do inquérito ou de uma não pronúncia), que a privação da liberdade, afinal, e do ponto de vista objetivo, não se justificou, uma vez que aqueles valores não chegaram a estar em causa. Nas palavras do citado Acórdão n.º 185/10, «o risco que todo o indivíduo corre de, verificados certos pressupostos legais, se ver sujeito a prisão preventiva é […] consequência ou “contrapartida” de uma dupla necessidade: da necessidade de proteger a liberdade dos outros; da necessidade de salvaguardar bens comunitários de segurança e de eficácia do sistema penal» (vide ibidem ). Tal é inerente à função cautelar e à correspondente perspetiva ex ante adotada ao impor a privação da liberdade nas mencionadas circunstâncias. E, todavia, nem o artigo 27.º, n.º 5, da Constituição nem o artigo 5.º, § 5, da CEDH impõem o dever de indemnizar todo e qualquer arguido absolvido a quem anteriormente tenha sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva. Com efeito, estes preceitos são claros no sentido de apenas visarem a compensa- ção de situações de privação inconstitucional ou ilegal (ou contrária à CEDH) da liberdade (as situações de
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