TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020

175 acórdão n.º 262/20 para separar os filhos dos pais, «quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial» (artigo 36.º, n.º 6). Fora daquelas previsões constitucionais expressas só o “ato materialmente jurisdicional” ou o “ato nuclearmente pertencente à função jurisdicional” exige o monopólio de juiz. Ora, na busca de delimitação do que seja um “ato materialmente jurisdicional” é comum entender-se que basta que se afirme outro interesse público a par da resolução jurídica da questão para nos depararmos com uma área de mera reserva relativa de jurisdição. Em tal hipótese não se poderá excluir a legitimidade constitucional da intervenção decisória da autoridade não jurisdicional para pacificação desse interesse público (Paulo Rangel, Repensar o Poder Judicial. Fundamentos e Fragmentos, Publicações Universi- dade Católica, 2001, pp. 306-307). Desta forma, a diferenciação entre reserva absoluta e relativa redunda, na prática na verificação, ou não, da presença de interesse público alheio ao conflito estritamente jurídico. Ou, como salientado, no Acórdão n.º 387/19, desta 1.ª Secção, ponto 36, ainda que a propósito de questão de constitucionalidade diversa, «Dentro do princípio da reserva de jurisdição dos tribunais é possível distinguir a dimensão da garantia do recurso a juízo contra os atos de quaisquer outras entidades ( Rechtsweggarantie  ou Gerichtsvorbehalt ) da dimensão da reserva de juiz ( Richtervortbehalt ). A primeira satisfaz-se com a possibilidade do recurso a tribu- nal desde que a pronúncia deste seja a decisiva. Exprime a ideia de que relativamente a algumas situações é legítima a intervenção de outros poderes desde que seja assegurado depois o direito de acesso aos tribunais.» 16. Na norma em análise é patente o interesse público na intervenção da CPCJ para autorizar a partici- pação dos menores em programas de televisão. A Constituição reconhece as crianças como sujeitos de direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, preocupa-se com as situações de necessidade associadas à sua natural vulnerabilidade, reconhecendo-lhes um específico e próprio «direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral» (artigo 69.º, n.º 1). A «noção constitucional de desenvolvimento integral (n.º 1,  in fine ) – que deve ser aproximada da noção de “desenvolvimento da personalidade” (artigo 26.º-[1]) – assenta em dois pressupostos: por um lado, a garantia da dignidade da pessoa humana (cfr. artigo 1.º), elemento “estático”, mas fundamental para o alicer- çamento do direito ao desenvolvimento; por outro lado, a consideração da criança como pessoa em forma- ção, elemento dinâmico, cujo desenvolvimento exige o aproveitamento de todas as suas virtualidades» (cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, ob. cit. , pp. 869-870). De outro lado, e apesar de a Constituição reconhecer um papel fundamental à família no desenvolvi- mento das crianças – como resulta também da Convenção sobre os Direitos da Criança, a família constitui o elemento fundamental da sociedade, e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus mem- bros, e em particular das crianças – não devem ignorar-se as muitas situações em que o comportamento (por ação ou omissão) dos pais, do representante legal ou de quem tenha a guarda de facto do menor põe em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento. Num tal quadro, nos termos da LPCJP, a promoção dos direitos e a proteção da criança e do jovem em perigo incumbe, subsidiariamente, às entidades com competência em matéria de infância e juventude, às CPCJ e, em última instância aos tribunais, quando a intervenção das comissões de proteção não possa ter lugar por falta de consentimento dos pais, representante legal ou de quem tenha a guarda de facto da criança ou do jovem ou por não dispor dos meios a aplicar ou executar a medida adequada. Sendo entidades não judiciárias, com autonomia funcional, que visam promover os direitos da criança e do jovem e prevenir ou pôr termo a situações suscetíveis de afetarem a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvol- vimento integral, as CPCJ atuam, sujeitas ao dever de imparcialidade e independência, em promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem – «quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo» (artigo 3.º, n.º 1, da LPCJP).

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