TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
156 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL “[…] 57. O Tribunal já foi chamado a apreciar, por duas vezes, casos de condenação de um Requerente por um crime contínuo ou continuado, embora sem as distinguir (v. Ecer e Zeyrek c. Turquia , n. os 29295/95 e 29363/95, ECHR 2001–I e Veeber, supracitadas). Nestas decisões, o Tribunal observou que, por definição, este tipo de ilícito é cometido ao longo de um período temporal (v. Veeber , supracitada, § 35). Mais afirmou que, quando alguém é acusado da prática de uma infração continuada, o princípio da certeza da lei exige que os concretos atos que compõem o crime, e que acarretam responsabilidade criminal, sejam claramente expostos na acusação. Ademais, a decisão condenatória também deve tornar claro que a condenação resulta da prova dos elementos que integram a continuação […]. 58. O Tribunal também reitera que, em qualquer sistema legal, cabe aos tribunais nacionais interpretar as disposições da lei penal substantiva para determinar, por referência à estrutura de cada crime, a data em que, verificando-se todos os elementos respetivos, foi praticado um ato punível. A Convenção não obsta a esta forma de interpretação judicial, desde que as conclusões alcançadas pelos tribunais nacionais sejam razoavelmente previsíveis no âmbito da respetiva jurisprudência […]. […] 63. […] Uma vez que a conduta do Requerente prosseguiu após 01/06/2004, a data em que a pena de abuso de pessoa em coabitação foi introduzida no Código Penal, ele podia e devia esperar, se necessário mediante aconselha- mento jurídico, ser julgado por um crime continuado apreciado de acordo com a lei em vigor à data em que praticou o último ato abusivo […]. [O Tribunal] não tem qualquer dúvida de que o Requerente estava numa posição em que podia prever, não só quanto ao período posterior à entrada em vigor desta lei de 01/06/2004, mas também relativamente ao período desde 2000 até essa data , que poderia ser criminalmente responsabilizado pela prática de um crime con- tinuado, e ajustar a sua conduta de acordo com essa previsão […]. […]” (tradução livre, pelo relator, itálicos acrescentados). Ou seja, na síntese da jurisprudência do TEDH a este respeito, pelo juiz Paulo Pinto de Albuquerque, em declaração de voto (inteiramente concordante) aposta ao referido acórdão de 27 de janeiro de 2015, “[e] ntre outras, quatro grandes consequências práticas decorrem do tratamento unificado dos atos individuali- záveis como crime continuado. […] [Tais atos devem ser juridicamente considerados] como um todo unifi- cado e punidos com uma só pena, em lugar de várias. […] Se os atos penalmente relevantes forem diversos e de diferente gravidade, pode ser punido pelo mais grave deles, tendo a decisão em conta a conduta unificada como um todo. A segunda consequência é que a lei em vigor no momento em que cessou a conduta que integra o crime continuado é aplicável aos atos individualizáveis anteriores à sua entrada em vigor, desde que estes caibam na previsão da lei nova. […] A Terceira consequência é que o crime continuado se inicia com o primeiro ato individualizável, mas apenas se completa quando seja praticado o último que venha a integrar a continua- ção. Daqui decorrem duas consequências lógicas. Em primeiro lugar, os prazos de prescrição só se iniciam quando a conduta criminosa se completa, ou seja, quando o último ato é praticado e, em segundo lugar, os atos individualizáveis [entenda-se: anteriores, que estariam] sujeitos a prescrição não ficam excluídos da punição enquanto parte integrante de um crime continuado ” (tradução livre, pelo relator, com itálicos acrescentados). Em suma, também para o TEDH, como para o Tribunal Constitucional, a unificação decorrente da qualificação de uma conduta penalmente relevante enquanto “crime continuado” tem importantes con- sequências em sede de garantias individuais quanto à aplicação da lei penal no tempo, tornando possível a aplicação da lei vigente à data da última conduta (no pressuposto de se tratar de lei certa, o que não se questiona nos presentes autos) – conduta que resultou de uma atuação voluntária de alguém que podia (e devia) contar com a norma incriminadora e a respetiva sanção e, ainda assim, escolheu agir – rectius , escolheu continuar a agir.
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