TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
153 acórdão n.º 261/20 2.3.3. Quanto à invocada violação da proibição da retroatividade da lei penal desfavorável – que consti- tui o elemento central da argumentação do Recorrente –, deve ter-se em conta, na interpretação do n.º 4 do artigo 29.º da Constituição, que se encontra superado há muito na jurisprudência constitucional o entendi- mento segundo o qual o âmbito de aplicação do preceito se limita às normas de direito penal estritamente material. Como se pode ler no Acórdão n.º 451/93: “[…] [Segundo esse entendimento, entretanto superado,] o citado artigo constitucional [artigo 29.º, n.º 4] visava apenas a aplicação da lei criminal, ou seja, da lei penal de caráter substantivo que é a competente para definir crimes (bem como os pressupostos das medidas de segurança) e as respetivas penas (tal como as medidas de segurança), não se aplicando aos preceitos processuais, para os quais rege o artigo 32.º da Lei Fundamental, onde não se prevê qualquer princípio de aplicação retroativa de normas mais favoráveis. Esta decisão do Tribunal foi objeto de apreciação crítica por parte de J. J.Gomes Canotilho na Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3792, pp. 84 e seguintes, onde, depois de concordar com a solução do aresto quanto à não violação do princípio da igualdade (por estarmos perante uma questão que se insere no ‘problema geral da sucessão no tempo das leis processuais penais’ e ‘todos os esquemas intertemporais apresentarem vantagens e inconvenientes’, a opção por um deles ‘cabe na discricionariedade do legislador’ e por isso não se poder falar em inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade), manifesta ‘sérias reticências [por se dar por demons- trado] que os ‘candidatos positivos’ reentrantes no âmbito do artigo 29.º/4 da CRP se limita[re]m às leis penais materiais ou substantivas’. No essencial, Gomes Canotilho entende que o princípio do tratamento mais favorável ao arguido abrange não apenas o direito material sancionatório, mas também as normas processuais de natureza substantiva, propendendo a con- siderar como tais, na senda do ensino de Figueiredo Dias ( Direito Processual Penal, I, Coimbra, 1981, p. 32, e Direito Processual Penal , 1988/89, Secção de Textos da Universidade de Coimbra, p. 10) ‘ as normas processuais penais que condicionem a responsabilidade penal ou contendam com os direitos fundamentais do arguido ou do recluso ’. […] Em abono de tal entendimento invoca este Autor o princípio da conformidade dos atos do Estado com a Constituição ( artigo 3.º, n.º 3, da Constituição) e a aplicabilidade direta dos direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 1, da Lei Fundamental) uma vez que ‘nem sempre se toma em atenção que os órgãos jurisdicionais são, eles próprios, entidades públicas vinculadas pelos direitos, liberdades e garantias’, que assim devem ser entendidos como ‘medidas materiais das decisões jurisdicionais’, como ‘normas de decisão para a interpretação e aplicação do ‘direito da lei’.’ […] Recentemente, a 2.ª Secção do Tribunal Constitucional teve ocasião de recordar esta orientação jurispruden- cial a que temos vindo a aludir, bem como a citada referência crítica de Gomes Canotilho, para apreciação de um recurso interposto de uma decisão judicial que desaplicou com fundamento em inconstitucionalidade a norma do artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 78/87, por violação do disposto nos artigos 29.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da Constituição (Acórdão n.º 250/92, publicado no Diário da República , II Série, de 27 de outubro de 1992). Aí se entendeu estar em causa ‘a questão da constitucionalidade de normas que têm a ver diretamente com a pena aplicável’, e, depois de estabelecer o contraponto entre o regime do artigo 409.º do Código de Processo Penal de 1987 e o do artigo 667.º do Código de Processo Penal de 1929, concluiu-se que ‘apesar de o n.º 2 do § 1.º desse artigo 667.º assegurar nesse caso a defesa dos arguidos, temse como certo que a norma em questão, ao permitir a agravação da pena, em recurso interposto apenas pelo arguido, ofende o princípio consignado na parte final do n.º 4 do artigo 29.º da Cons- tituição, ou seja, o princípio da aplicação retroativa das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido .’ Em abono de tal entendimento o aresto em causa recordou a opinião de Figueiredo Dias ( Direito Processual Penal, Lições do ano de 1988/89, Secção de Textos da Faculdade de Direito de Coimbra, capítulo I, § 4º, III, 4.) segundo o qual ‘ [...] importa que a aplicação da lei processual penal a atos ou situações que decorrem na sua vigên- cia, mas se ligam a uma infração cometida no domínio da lei processual antiga, não contrarie nunca o conteúdo da garantia conferida pelo princípio da legalidade. Daqui resultará que não deve aplicar-se a nova lei processual penal a um ato ou situação processual que ocorra em processo pendente, sempre que da nova lei resulte um agravamento da
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