TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020

118 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 19. A preferência prevista no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil é atribuída no quadro de um con- trato de arrendamento e por conseguinte tem pressuposto que o direito à habitação está constitucionalmente protegido através da forma contratual. Por isso, a venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado não põe em causa o direito à habitação, uma vez que, nos termos do artigo 1057.º do Código Civil, «[o] adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo». Assim, a compra e venda do imóvel em nada altera a posição contratual do arrendatário relativamente à situação de que beneficiava antes da celebração do negócio. Os requisitos e limites à denúncia do contrato pelo novo senhorio são precisamente os mesmos que vinculavam o anterior senhorio. Por conseguinte, o artigo 1057.º do Código Civil garante que o direito à habitação do arrendatário de parte do prédio que foi alienado é protegido nos mesmos termos em que seria se não tivesse ocorrido tal alienação – nos mesmos termos, portanto, em que qualquer outro arrendatário é protegido. Deste modo, o arrendatário beneficia das disposições que genericamente impõem limites e condições à faculdade de denúncia do contrato de arrenda- mento por parte do senhorio. Beneficia também, por exemplo, das garantias constantes do Regime Jurídico das Obras em Prédios Arrendados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de agosto, e recentemente alterado pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, designadamente nas situações em que o senhorio pretenda realizar obras de remodelação ou restauro do imóvel em que se insere o local arrendado. Todavia, o facto de o direito à habitação já estar assegurado através do contrato de arrendamento não dispensa a possibilidade do legislador promover a estabilidade da habitação através do acesso à propriedade a quem frui dos bens ao abrigo de um contrato de arrendamento tendencialmente duradouro. A atribuição do direito de preferência ao arrendatário habitacional na venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado, constitui um dos possíveis meios de facilitar o acesso à propriedade de habitação própria. Nesta dimensão, a proteção da posição do arrendatário também pode envolver o direito constitucional de propriedade, em confronto com a posição do proprietário-senhorio. O artigo 62.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 65.º, n.º 2, alínea c) , e n.º 2, da CRP, pode ser interpretado no sentido de abranger o direito do arren- datário a obter propriedade da habitação própria. Não se trata, porém, de um direito da mesma natureza que o direito do senhorio: enquanto a proteção da posição jurídica do senhorio decorre de um direito de propriedade já existente – a garantia da existência de propriedade – a proteção do arrendatário tem por objeto a possibili- dade ou expectativa de adquirir a propriedade – direito à aquisição da propriedade. Neste caso, já não está em causa um direito de defesa perante os poderes públicos do Estado, mas «um direito constitucional individual a uma ação positiva do Estado, no sentido de criar e manter em vigor normas de direito patrimonial privado nos termos das quais possam ser constituídos concretas posições jurídicas suscetíveis, por seu turno, de serem abrangidas pela garantia individual da propriedade» (Miguel Nogueira de Brito, ob. cit. , p. 936). Por outro lado, no que se refere ao âmbito subjetivo de proteção do direito constitucional de proprie- dade, ainda se poderia afirmar que o arrendatário, à luz do artigo 62.º da Constituição, também é um pro- prietário. Com efeito, segundo o entendimento dominante na jurisprudência do Tribunal Constitucional, o conceito constitucional de propriedade é um conceito amplo que abrange, para além da propriedade em sentido civil (o direito real de propriedade), todos os direitos subjetivos de conteúdo patrimonial (Acórdão n.º 491/02). Nesse sentido alargado, a posição do arrendatário habitacional também poderia ser protegida pela tutela constitucional da propriedade privada, na medida em que esta assegura ao titular do direito a permanência da posição jurídica adquirida com base na lei (Acórdão n.º 267/95). Simplesmente, o facto de se entender que a posição do arrendatário também poderá ser abrangida pela garantia constitucional da propriedade privada não significa que possa ser sempre invocada em conflito ou colisão com direito de propriedade do senhorio. A posição jurídica que poderia ser protegida pela tutela constitucional da propriedade era apenas a permanência da posição de arrendatário habitacional. O que aí estaria em causa era garantir que o direito de arrendamento persistiria nos termos em que foi validamente constituído. Ora, como se referiu, a preferência na alienação do local arrendado não visa garantir a perma- nência da situação de arrendatário, mas antes facilitar a aquisição da propriedade desse local. Portanto, a

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