TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
117 acórdão n.º 299/20 arrendada»; por sua vez, o n.º 3 determina que «[o] Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria». O direito fundamental à habitação, na dimensão positiva, traduz-se na pretensão do cidadão em ver realizados os deveres do Estado neste domínio. No mínimo, o legislador terá que garantir que as pessoas tenham a possibilidade de aceder à habitação própria ou de a conseguir através de contrato de arrendamento. A propriedade da habitação própria não é, pois, a única via de concretização do direito à habitação, dispondo o legislador ordinário de amplo espaço de liberdade de conformação nesta matéria. O direito à habitação pode ser constitucionalmente garantido de vários modos: permitindo o acesso imediato à proprie- dade plena do imóvel [ v. g. o direito de preferência do arrendatário previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil]; através de regimes especiais de acesso à habitação ( v. g. o direito real de habitação duradoura, previsto no Decreto-Lei n.º 1/2020, de 9 de janeiro, o regime jurídico das cooperativas de habita- ção, regulado pelo Decreto-Lei n.º 502/99, de 19 de dezembro, o direito real de habitação, em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada comum, atribuído pela Lei n.º 7/2001, de 11 de maio); ou ainda através de normas imperativas de proteção do arrendatário habitacional ( maxime , reno- vação obrigatória, limites à denúncia, à atualização de rendas, etc.). Como se refere no Acórdão n.º 649/99, o direito à habitação «não se esgota ou, ao menos, não aponta, ainda que de modo primordial ou a título principal, para o direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão». Portanto, a Constituição reconhece vários modos de garantir o direito à habitação, sem estabelecer, à partida, preferência de um em detrimento do outro. Ainda assim, admite-se que a posição de proprietário possa, em abstrato, ser considerada mais estável que a de arrendatário e que, em consequência, o legislador, no âmbito da ampla liberdade de definição de políticas sociais, dê primazia a essa via de concretização do direito à habitação. A opção por uma ou outra solução teria sempre, em todo o caso, de passar por aferição do modo como cada uma afeta o direito de propriedade privada do senhorio, à custa do qual se promove o direito à habitação do arrendatário. E tendo em conta, além do mais, que «os titulares passivos do direito à habitação, como direito social, são primacialmente o Estado e as demais coletividades públicas territoriais e não principalmente os proprietários e senhorios» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit. , p. 837). O Tribunal Constitucional por diversas vezes entendeu justificadas limitações ao direito de propriedade do senhorio com base na proteção constitucional do direito à habitação do inquilino. A jurisprudência mais abundante incide sobre o arrendamento urbano, considerando-se conformes à Constituição normas que conferem características vinculísticas ao contrato de arrendamento para habitação, designadamente no que se reporta à renovação automática e obrigatória, à livre denúncia pelo senhorio, e às limitações quanto à atualização da contrapartida pelo desfrute do arrendado (Acórdãos n. os 425/87, 131/92, 151/92, 311/93, 4/96, 263/00, 420/00 e 201/07). Na ponderação do conflito entre o direito de propriedade e o direito à habitação, o Tribunal formulou a seguinte orientação, no Acórdão n.º 151/92: «Mas, fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana (ou seja, naquilo que a pessoa real- mente é – um ser livre com direito a viver dignamente), existe, aí, um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer. E para isso pode, até, se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio de solidariedade social); vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir. É a esta luz que hão de ser avaliadas normas como aquelas que, como já atrás se referiu, subtraem o contrato de arrendamento para habitação à regra da liberdade contratual e o submetem à regra da renovação automática e obrigatória. Nelas, o legislador, conhecendo como conhece, a falta de casas para habitação, sacrifica um direito do senhorio a favor do direito do locatário a dispor de uma casa para sua habitação. De facto, retira àquele o direito que, em princípio, lhe assistiria de denunciar livremente o contrato de arrendamento celebrado – direito este que está compreendido, seja no direito de iniciativa económica privada (artigo 61.º, n.º 1, da Constituição), seja no direito de propriedade privada (artigo 62.º, n.º 1, da Constituição)».
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