TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
112 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL genérica de transmissão do direito de propriedade, sem condicionamentos, não constitui dimensão do direito de propriedade à qual se aplique o regime dos direitos, liberdades e garantias”, aplicando tal entendimento a normas limitadoras da transmissão da propriedade de farmácias. No que toca às intervenções conflituantes com o direito a não transmitir – vertente negativa da liber- dade de transmissão –, cabe dizer que o Tribunal já as considerou como verdadeiras restrições de posições jusfundamentais dos proprietários, porque a obrigação de contratar derroga o princípio geral segundo o qual o sujeito contrata se quiser, quando quiser e com quem quiser, e por isso mesmo deve ser enquadrada no âmbito de aplicação do direito de cada um à não privação da propriedade. Assim, no Acórdão n.º 421/09 – que incidiu sobre norma que previa a “venda forçada” de edifícios em consequência do incumprimento de deveres de reabilitação urbana – considerou-se que, «para todos os efeitos, o instituto da venda forçada implica a imposição de transmissão a outrem do bem de que é titular e, por isso mesmo, a sua perda»; nessa medida, «porque a posição jusfundamental que assim é afetada detém estrutura análoga à dos direitos, liber- dades e garantias, será indiscutivelmente aplicável a qualquer ato legislativo que a restrinja o regime próprio dos limites das restrições, definido no artigo 18.º da Constituição». Observe-se, todavia, que a integração das intervenções conflituantes com a liberdade de não transmitir no campo de aplicação do direito de cada um à não privação da propriedade – como se faz no Acórdão n.º 421/09 – não significa decerto que é apenas essa liberdade negativa que tem «natureza análoga». É claro que a liberdade de transmissão é um direito de conteúdo defensivo – e só por isso tem «natureza análoga – que pode ser exercido positivamente (transmitindo) ou negativamente (não transmitindo). 15. O poder de transmissão de direitos patrimoniais reclama, necessariamente, a existência de liberdade contratual em geral e de liberdade de disposição testamentária em particular, ainda que não sejam irrestri- tas. A liberdade contratual constitui, assim, o instrumento jurídico necessário ao exercício da propriedade privada. Pode mesmo dizer-se que a afirmação do poder sobre uma coisa produz-se quando o proprietário a aliena. Por seu turno, a liberdade contratual representa a mais importante manifestação da autonomia privada. Como escreve Mota Pinto, a autonomia privada encontra os «veículos da sua realização nos direitos subjetivos e na possibilidade de celebração de negócios jurídicos» ( Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, Coimbra Editora, p. 90). Ora, o princípio da autonomia privada tem dignidade constitucional, podendo ser inferido dos precei- tos que consagram a liberdade no desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º), a liberdade de iniciativa privada (artigo 61.º) e o próprio direito constitucional à propriedade, pois – como se refere no Acórdão n.º 421/09 – a “propriedade” também é “um pressuposto da autonomia das pessoas”. Tal como o direito de propriedade, a autonomia privada e a liberdade contratual existem na medida em que, direta ou indiretamente, o legislador permite e delineia. Porém, para além da previsão de normas jurídicas imperativas que enquadrem socialmente a propriedade e a liberdade contratual, existe um espaço de autodeterminação individual que implica, por parte do Estado, dever de abstenção. A Constituição «recebe, como princípio de valor, a autonomia privada, não deixando dúvidas de que não quer destruir nem apoucar o livre desenvolvimento da personalidade, a livre iniciativa económica, a liberdade negocial, a propriedade privada, a família ou o fenómeno sucessório» (Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª edição, Almedina, p. 242). Pode, portanto, concluir-se que a faculdade de transmissão, necessariamente exercida através de negócio jurídico, conexiona o exercício da propriedade com a autonomia privada: o proprietário, quando aliena, exerce simultaneamente o seu direito patrimonial e a sua liberdade contratual. Daí ser necessário – no âmbito da apreciação da conformidade constitucional – distinguir as limitações ao poder de disposição que se reper- cutem no âmbito da autonomia negocial do proprietário das limitações que aí se projetam. Assim, há “condicionamentos” ou “restrições” à transmissão da propriedade que se impõem em função do tipo e natureza do direito a transmitir, sem provocarem qualquer limitação ao âmbito da autonomia privada do proprietário. Por exemplo, as limitações à transmissão da propriedade de farmácias decorriam do
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