TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
111 acórdão n.º 299/20 E não pode, na verdade, deixar de concluir-se que o direito constitucional de propriedade integra poderes e faculdades subjetivas intangíveis, através da abstenção do legislador. Como refere Miguel Nogueira de Brito, «os direitos de conteúdo patrimonial adquiridos com base na lei são protegidos contra posteriores lesões pelo poder público do Estado, efetuadas designadamente através da lei, sem que isso envolva qualquer resultado paradoxal. Enquanto direito fundamental, isto é, direito subjetivo dos indivíduos, o artigo 62.º, n.º 1, garante a estes a existência de bens e direitos em face do poder do Estado, nos termos em que eles foram adquiridos, em conformidade com as normas vigentes no momento relevante» ( ob. cit. , pp. 852 e 853). 14. Para além do direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade, a relação privada protegida pelo n.º 1 do artigo 62.º da CRP compreende (i) o direito de aceder à propriedade, (ii) o direito à transmis- são da propriedade inter vivos ou mortis causa , (iii) e a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietá- rio. Enquanto os dois primeiros estão expressamente enunciados na norma do n.º 1 daquele artigo, o direito ao uso e fruição está implícito na garantia constitucional, já que a garantia de existência de propriedade, entendida como expressão de liberdade individual, só ganha sentido se for acompanhada da possibilidade de aproveitamento livre dos bens, no interesse do respetivo titular. No que respeita aos direitos e faculdades de uso do proprietário, nem todos podem ser objeto de pro- teção da garantia constitucional da propriedade. A modelação do conteúdo da propriedade, justificada em nome da cláusula da conformação social da propriedade, pode não entrar no conteúdo intangível que se ergue prima facie contra os poderes públicos. De facto, a conformação legislativa da propriedade incide as mais das vezes sobre a utilização das coisas que são objeto do direito de propriedade e não sobre o direito em si, deixando intocado o mais relevante do seu conteúdo. Por isso, a jurisprudência constitucional tem afastado do âmbito de proteção da garantia constitucional da propriedade os direitos de urbanizar, lotear e edificar, quando limitados ou afetados por licenças administrativas, planos de ordenamento ou diplomas de classificação de áreas protegidas (Acórdãos n. os 329/99, 517/99, 602/99, 377/99, 394/04, 496/08 e 14/09). Relativamente ao direito à propriedade, no sentido de direito de apropriação ou faculdade de acesso à propriedade de bens, o Tribunal excluiu do âmbito dos direitos de natureza análoga o acesso à propriedade dos bens «farmácia» e «firma» (Acórdãos n. os 187/01 e 139/04), quando interpretado na função individual de liberdade de apropriação, considerando que o direito é tutelado por outros princípios constitucionais, como a liberdade de iniciativa privada ou o direito geral de liberdade resultante da conjugação dos artigos 26.º, n.º 1 e 27.º, n.º 1, da CRP. De facto, como refere Miguel Nogueira de Brito, «deve entender-se que a proteção constitucional da propriedade incide sobre situações jurídicas subjetivas concretas, já existentes na esfera jurídica de uma pessoa, não abrangendo expectativas futuras ou possibilidades de obter um ganho patrimonial», e por isso, a “aquisição”, que é a atividade em si mesmo e não o resultado de uma atividade, deve ser «incluído no âmbito de proteção da liberdade profissional e da liberdade de iniciativa privada» ( ob. cit. , pp. 940 e 941); ou como se diz no Acórdão n.º 187/01 «o regime de tal liberdade não pode ser confun- dido com o do direito de propriedade – mesmo enquanto este inclui uma dimensão de acesso à propriedade». Já na função social de acesso da propriedade a todos, considera-se que é um direito fundamental de carácter económico (Acórdão n.º 76/85). Quanto à liberdade de transmissão da propriedade – a faculdade afetada pelo direito legal de preferência –, o n.º 1 do artigo 62.º garante que não pode haver bens vinculados ou sujeitos a interdição de alienação, o que é entendido no «sentido restrito de direito de não ser impedido de a transmitir; mas não no sentido genérico de liberdade de transmissão, a qual pode ser mais ou menos profundamente limitada por via legal, quer quanto à transmissão inter vivos (obrigações de venda, direito de preferência, etc.), quer quanto à transmissão mortis causa (limites à liberdade de disposição testamentária, desde logo, a sucessão legitimária)» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. , p. 804). Nos casos em que a intervenção legislativa conflitua com o direito a não ser impedido de transmitir – vertente positiva da liberdade de transmissão -, o Tribunal tem vindo a recusar natureza análoga à dimensão genérica da liberdade de transmissão: no Acórdão n.º 187/01 afirmou-se perentoriamente que “a liberdade
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