TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020

109 acórdão n.º 299/20 propriedade e o direito à herança são garantidos. O seu conteúdo e limites são estabelecidos pela lei (...). O seu uso deve servir ao mesmo tempo os bens coletivos”. Embora a Constituição lhe não faça uma referência textual, existirá portanto, e também entre nós, uma cláu- sula legal da conformação social da propriedade, a que aliás terá aludido desde sempre a jurisprudência consti- tucional, ao dizer que “[e]stá tal direito de propriedade, reconhecido e protegido pela Constituição, na verdade, bem afastado da conceção clássica do direito de propriedade, enquanto jus utendi, fruendi et abutendi – ou na formulação impressiva do Código Civil francês (…) enquanto direito de usar e dispor das coisas de la manière la plus absolue (...). Assim, o direito de propriedade deve, antes do mais, ser compatibilizado com outras exigências constitucionais” (referido Ac. n.º 187/01, § 14, citando anterior jurisprudência)». Quer isto dizer que a margem de liberdade do legislador para determinar o conteúdo e limites da propriedade é tanto mais alargada quanto mais o objeto da propriedade estiver ao serviço da satisfação de um conjunto diversi- ficado de necessidades sociais e económicas, de acordo com o programa constitucional. Nesses casos, a prossecução dos interesses sociais só pode ser efetuada com diminuição do âmbito dos poderes e faculdades que formam o conteúdo subjetivo da propriedade privada. Por isso, quando a utilização e a decisão sobre um bem não se circuns- crevem à esfera do proprietário, antes tocam interesses do todo social, a cláusula de conformação social da proprie- dade contida no artigo 62.º da CRP possibilita ao legislador ordinário tomar em consideração interesses dos não proprietários contrapostos aos interesses dos proprietários, modelando ou restringindo o direito de propriedade de acordo com parâmetros constitucionais pertinentes. Como sintetiza o Acórdão n.º 148/05: «O próprio projeto económico, social e político da Constituição implica um estreitamento do âmbito de poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de limitações ou condicionamentos, quer a favor do Estado ou da coletividade, quer a favor de terceiros, das liberdades de uso, fruição e disposição (cfr., de entre outros, Acórdão n.º 866/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 34.º, pp. 53 e seguintes)». 13. A dimensão objetiva da garantia constitucional da propriedade privada não deve, porém, ser sobre- valorizada à custa da dimensão individual ou subjetiva. Como refere Rui Medeiros, «a Constituição protege a propriedade privada porque a encara como um espaço de autonomia pessoal, isto é, como um instrumento necessário para a realização de projetos de vida livremente traçados, responsavelmente cumpridos, e que não podem nem devem ser interrompidos ou impossibilitados por opressivas ingerências externas» ( ob. cit. , p. 901) – não se esvaziando por isso a dimensão jus-subjetiva da garantia constitucional da propriedade privada. E isto justamente porque através da propriedade privada confere-se aos indivíduos um conjunto inde- finido de poderes e faculdades, incluindo poderes de transmissão, que aumentam as suas possibilidades de atuação. Desse modo, a garantia constitucional da propriedade privada cumpre a função de assegurar ao respetivo titular um espaço de liberdade na esfera jurídico-patrimonial, através do reconhecimento de pre- tensões jurídicas individuais de uso, aproveitamento e fruição, numa base exclusiva, possibilitando, assim, uma formação responsável da vida. Enquanto direito fundamental, o artigo 62.º, n.º 1, da CRP, garante às pessoas «a existência de bens e direitos em face do poder do Estado, nos termos em que eles foram adquiridos, em conformidade com as normas vigentes no momento relevante»; e a garantia de existência da propriedade – e a sua utilização e dis- posição – significa que a «uma posição jurídica de direito privado é associado um direito subjetivo público de defesa ou manutenção dessa posição (Miguel Nogueira de Brito, A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional, Coimbra, 2007, pp. 846 e 852). Por conseguinte, atenta a dimensão de espaço de liberdade e autonomia individual, de liberdade geral de ação do proprietário face aos poderes públicos (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), o direito de propriedade privada configura um direito de defesa, com estrutura análoga à dos direitos, liberdades e garantias. Em jurisprudên- cia constante, o Tribunal tem dito que, «sendo afinal a “propriedade” um pressuposto da autonomia, não obstante a inclusão do direito que lhe corresponde no título respeitante aos “Direitos e deveres económicos,

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