TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020

107 acórdão n.º 299/20 Por isso, a questão jurídico-constitucional não tem necessariamente a mesma solução jurídica. É deci- sivo ter presente que o arrendatário não toma para si, em condição de tanteio, a totalidade do prédio alie- nado, mas apenas uma parte alíquota do mesmo, e que, se exercer a preferência, mantém em exclusividade o uso de parte da coisa comum. Nestas condições, o direito de preferência envolve maior limitação ao direito de livre disposição da pro- priedade, uma posição jurídica patrimonial que goza de proteção jurídico-constitucional através do direito de propriedade privada, previsto no artigo 62.º da Constituição. 12. No artigo 62.º, n.º 1, a Constituição consagra a garantia da propriedade privada, ao estabelecer que «a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição». A doutrina e a jurisprudência constitucional têm vindo a interpretar esta norma como estabelecendo uma dupla garantia da propriedade privada: uma garantia institucional, que se traduz na proteção da pro- priedade como instituto jurídico; e uma garantia individual, que protege como direito fundamental posições jurídicas sobre bens de valor patrimonial. Assim se expressa no Acórdão n.º 496/08: «o artigo 62.º da CRP consagra, não apenas direitos fundamentais (com estrutura análoga dos direitos, liberdades e garantias), mas também uma importante garantia institucional». Neste entendimento, a dimensão institucional e objetiva, como garantia de instituto, consubstancia, positivamente, uma injunção dirigida ao legislador no sentido de produzir normas que permitam carac- terizar um direito individual como propriedade no sentido constitucional e possibilitem a sua existência e capacidade funcional, e negativamente, uma proibição de aniquilar ou afetar o instituto infraconstitucional da propriedade. Como bem refere Maria Lúcia Amaral «a propriedade privada e o direito à sua transmissão, em vida ou por morte, constituem-se em institutos efetivamente existentes no seio da ordem jurídica por- tuguesa, pelo que ficam proibidas todas aquelas ações conformadoras dos poderes constituídos – particu- larmente do legislador ordinário – que venham ou pretendam vir a aniquilar tais institutos, erradicando-os do seio do nosso direito objetivo infraconstitucional» ( Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, Coimbra Editora, 1998, p. 555). Note-se, contudo, que o poder do legislador conformar o instituto da “propriedade” não é absoluto. Para além de ter de respeitar o conteúdo mínimo do instituto recebido e reconhecido pela Constituição, o legislador só pode conformar a “propriedade” «nos termos da Constituição». Significa isto, por um lado, que «o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas noutros lugares da Constituição (e na lei, quando a Constituição [para] ela remeter ou quando se trate de revelar limitações constitucionalmente implícitas) por razões ambientais, de ordenamento territorial e urbanístico, económicas, de segurança, de defesa nacional» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2007, p. 801); e por outro, que o legislador tem a obrigação de «conformar o instituto, não de qualquer modo, mas tendo em conta a necessidade de o harmonizar com os princípios constitucionais no seu conjunto» (Rui Medeiros, in idem /Jorge Miranda (org), Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª edição, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2017, p. 1245). Deste modo, a garantia constitucional articula-se expressamente com as funções desempenhadas pela lei na conformação do conteúdo e limites da propriedade: o direito de propriedade «tem de se compaginar com os outros imperativos constitucionais, sofrendo as limitações impostas por estas exigências» (Acórdão n.º 345/09). Por isso, a parte final do n.º 1 do artigo 62.º «significa que, neste domínio, a liberdade de conformação legislativa se encontra particularmente vinculado ao cumprimento de certos limites constitu- cionais: o poder legislativo está obrigado pela CRP a “conformar” a “propriedade”, mas só o pode fazer nos “termos” por ela mesmo definidos, ou seja, tendo em linha de conta o sistema constitucional no seu con- junto» (Acórdão n.º 496/08). Assim, por força do próprio artigo 62.º, quando garante a propriedade “nos termos da Constituição”, a atividade do legislador na determinação do conteúdo e limites do direito de propriedade encontra-se

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