TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
101 acórdão n.º 299/20 razão de ser do preceito é clara: o legislador presume que o contacto e a familiaridade do arrendatário com o local tomado de arrendamento, independentemente do seu fim – mas com mais relevo nos arrendamentos para habitação e para comércio, indústria e exercício de profissão liberal – quando feito por mais de um ano, lhe cria raízes no lugar, o que legitima que, querendo o senhorio vendê-lo ou dá-lo em cumprimento a terceiro, pesando a posição do terceiro com a do arrendatário, esta lhe mereça proteção, na medida em que, através do exercício da preferência se torna proprietário do local que já ocupa, deixando as vestes, mais precá- rias, de arrendatário» (“Cessão da Posição do Arrendatário e Direito de Preferência do Senhorio”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. III, Coimbra, Almedina, 2002, p. 509). A Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro – que estendeu o objeto da preferência aos prédios não cons- tituídos em propriedade horizontal –, também visa proteger o acesso à propriedade a quem frui parte do prédio ao abrigo de um contrato de arrendamento parcial. O direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil visa possibilitar o acesso do arrendatário habitacional à propriedade do local arrendado, pretendendo garantir desse modo maior estabilidade na habitação, objetivo que esteve na base da consagração legal do direito de preferência do arrendatário habitacional. Com efeito, na origem daquela Lei está o Projeto de Lei n.º 848/XIII/3.ª, em cuja exposição de motivos expressamente se nomeia a proteção do direito à habitação do inquilino como constituindo a finalidade das medidas propostas: «[O] direito à habitação e à estabilidade na ocupação de determinado locado pode ser colocado em causa, quando se trata da transação ou do fim do contrato de arrendamento do respetivo fogo e não é assegurado pela lei em vigor o pleno exercício do direito de preferência.[…]. Sempre se poderia apelar ao exercício do direito de preferência pelos inquilinos, tal como previsto no artigo 1091.º do Código Civil. Sucede que este regime encontra dificuldades de aplicação, em particular quando ligado a grandes transa- ções, seja por poder tratar-se de prédios que não se encontrem em regime de propriedade horizontal, sendo alienados no seu todo e sem hipótese do exercício do direito de preferência, seja pelo facto de a venda poder abranger diversas frações autónomas e de ter tal direito de ser exercido no seu conjunto. Em tais situações, ficam os inquilinos privados da possibilidade do exercício do direito de preferência, havendo que adequar o quadro legislativo à possibilidade real do exercício de tal direito, acrescentando-se ainda prazos mais dilata- dos para o efeito». O reconhecimento do direito de preferência a quem efetivamente habita no prédio objeto de transmis- são onerosa cumpre também o objetivo de conferir proteção contra a perda da habitação decorrente da espe- culação imobiliária. A referida exposição de motivos não deixa de sublinhar esse desiderato ao referir que o «caso mais recente relativo à anunciada intenção de alienação de património imobiliário arrendado, por parte de várias entidades financeiras, tornou evidente esta potencial inacessibilidade ao direito de preferência, por parte de centenas de inquilinos que foram confrontados com a venda das casas onde residem, nalguns casos com a oposição à renovação do contrato de arrendamento. A alienação de milhares de fogos em curto espaço de tempo por parte de entidades financeiras, com o objetivo de obter rapidamente receitas, inscreve-se nos movimentos especulativos que o mercado imobiliário tem vindo a estar sujeito por pressão do crescimento do turismo, das aquisições a valores elevados pelos residentes não habituais e dos vistos gold , da desregulação do alojamento local e da liberalização do regime de arrendamento». E na verdade, o direito de preferência pode ser instrumento impeditivo de movimentos especulativos. A existência de prédios urbanos não sujeitos ao regime de propriedade horizontal, realidade que tem alguma expressão nos núcleos históricos das cidades, não impede que o arrendamento tenha por objeto apenas uma parte do prédio. Porém, a circunstância do locado não ter qualquer autonomia jurídica, sendo antes visto como parte integrante do prédio em questão, leva a que não haja coincidência entre o objeto de arrendamento – a parte do prédio indivisa – e o objeto do direito de propriedade que é possível adquirir através do exercício do direito de preferência. De modo que a impossibilidade jurídica de adquirir a parte arrendada é suscetível de vulnerar a posição do arrendatário, expondo-o às eventualidades referidas na exposição de motivos, com o consequente perigo da perda da habitação. Por isso, pode considerar-se que o direito de preferência, além de promover a estabilidade na habitação, constitui ainda um meio de “lutar contra o despovoamento do centro
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