TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 108.º Volume \ 2020
100 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL característica fundamental “a prorrogação legal automática do contrato”, que o direito de preferência do arrendatário foi reconhecido, pela primeira vez, pelo artigo 11.º da Lei n.º 1662, de 4 de setembro de 1924. Assim, a primeira justificação para a consagração legal do direito de ser preferido na venda do local arrendado para fins comerciais ou industriais começou por se encontrar dentro da índole geral do direito de preferência: extinguir ónus ou restrições que prejudicam o melhor aproveitamento do imóvel arrendado. Nos trabalhos preparatórios daquela lei considera-se que a “situação do prédio arrendado para um estabele- cimento comercial ou industrial é muito semelhante à de uma propriedade imperfeita”, pois, não obstante não haver fracionamento do domínio, a imposição da renovação do contrato, a não extinção do vínculo por morte de qualquer das partes e a admissibilidade do trespasse, “tudo parece afinal, como se existisse um fra- cionamento perpétuo do direito de propriedade”, que se pretende extinguir com a preferência (José Carlos Brandão Proença, “Para uma leitura restritiva da norma (artigo 1091.º do Código Civil) relativa ao direito de preferência do arrendatário”, in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, Vol. II, Coimbra, Almedina, 2008, p. 942). É ainda em defesa da propriedade, mas agora na perspetiva da função social, que Pinto Loureiro fundamenta o direito de preferência do arrendatário: tornar livre a propriedade «de situações embaraçosas, desvalorizadoras das coisas e geradoras de demandas, como as resultantes de arrendamentos comerciais e industriais», casos onde «não só a propriedade produzirá melhor e mais com- pletamente desempenhará a função social que lhe comete, mas se evitarão litígios e desavenças» ( Manual dos Direitos de Preferência, Livraria Morais, 1944, Vol. I, p. 7). Modernamente, a atribuição ao arrendatário do direito de preferência justifica-se pelo interesse social das atividades prosseguidas no local arrendado, as quais implicam estabilidade e continuidade da exploração comercial ou industrial ou da profissão liberal no prédio arrendado, tutelando, além do interesse económico do arrendatário, outros interesses, como a preservação de postos de trabalho, dos clientes ou utentes dos estabelecimentos e das atividades instaladas no local arrendado. Como refere Agostinho Cardoso Guedes, «aqui, desvaloriza-se a propriedade do senhorio em detrimento de um outro valor: a proteção da atividade produtiva ou comercial – a proteção da empresa, numa palavra» ( O Exercício do Direito de Preferência, Porto, Publicações Universidade Católica, 2006, p. 73). Já o direito de preferência do arrendatário habitacional foi, desde logo, fundamentado no interesse público de favorecer o direito à habitação, enquanto direito social reconhecido e consagrado constitucio- nalmente. Com efeito, no breve preâmbulo da Lei n.º 63/77, de 25 de agosto, justifica-se o novo direito enquanto expressão do direito fundamental à habitação: «No domínio dos direitos e deveres sociais, dispõe a Constituição da República que ao Estado compete, além do mais, adotar uma política de acesso à habitação própria (artigo 65.º, n.º 2). Poderá contribuir para a referida política, ainda que em grau reduzido, conferir aos arrendatários habitacionais direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento dos imóveis respetivos». Tratou-se, pois, de medida de política habitacional com o interesse subjacente de favore- cer o direito à habitação: um meio de “proporcionar o acesso à propriedade a quem está (ou esteve) a fruir os bens ao abrigo de um direito pessoal de gozo tendencialmente duradouro” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 1987, p. 389). Assim, a preferência do arrendatário habitacional constitui um dos instrumentos que o legislador encon- trou para concretizar, no plano ordinário, o objetivo constitucional de facilitar o acesso à habitação própria, assumindo aqui relevo prioritário o interesse da estabilidade na habitação. A promoção da estabilidade na ocupação do locado constitui, entre outras finalidades de índole económica e de fomento de uma exploração eficiente dos bens, a ratio subjacente ao direito de preferência consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil. O alcance deste direito é, essencialmente, o de conferir ao arrendatário oportuni- dade de aceder, definitivamente, ao nível máximo de segurança do gozo do imóvel, adquirindo a plena pro- priedade, em antecipação a um terceiro. Através do direito de preferência o arrendatário tem acesso imediato à propriedade do imóvel e, dessa forma, ganha a estabilidade que nunca teria se continuasse a gozar o locado por força do vínculo de base contratual. Como diz Manuel Januário da Costa Gomes – relativamente ao artigo 47.º, n.º 1, do RAU, mas em termos transponíveis para a norma hoje constante do Código Civil – «A
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