TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

96 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL deviam contar não é suscetível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas, pelo que não se verifi- cam as razões que justificam a proibição da retroatividade. Como interpretações possíveis da lei antiga com que os interessados podiam e deviam contar não se pode- rão considerar aquelas que extravasam, restritiva ou extensivamente, o seu teor literal, pelo menos enquanto não houver posições doutrinais ou prática jurisprudencial que as adotem, mas incluem-se, seguramente, aque- las que são viáveis à face do texto legal anterior numa mera interpretação declarativa. Como se referiu já, o teor literal do n.º 14 do artigo 88.º do CIRC permite, por mera interpretação decla- rativa, que tenha em mente o conceito de sujeito passivo alargado que resulta dos artigos 18.º, n.º 3, da LGT e 115.º do CIRC, corroborados pelo artigo 31.º, n.º 1 daquela Lei, atribuir a qualificação de sujeito passivo às sociedades dominantes dos grupos abrangidos pelo RETGS, pelo que a consideração dos prejuízos do grupo como facto determinante do agravamento da tributação autónoma tem de considerar-se como uma interpreta- ção com que os contribuintes poderiam e deveriam contar anteriormente.” Este argumento apoia-se em duas premissas. Por um lado, entende-se que a proibição da retroatividade fiscal é uma refração ou concretização do princípio da proteção da confiança, pelo que não se estende aos casos em que as leis fiscais, ainda que retroativas, não lesam as expectativas legítimas que os contribuintes terão depositado na estabilidade do regime anterior. Por outro lado, considera-se que as leis interpretativas não lesam quaisquer expec- tativas legítimas, na medida em que, impondo um dos sentidos possíveis e previsíveis da lei interpretada, ou uma «interpretação declarativa» do preceito a que se referem, produzem consequências com as quais os contribuintes deviam contar. A primeira destas premissas não oferece quaisquer dúvidas. É discutível se a proibição constitucional da retroa- tividade fiscal consubstancia uma regra, tendencialmente absoluta, ou um princípio, aplicável sob reserva de pon- deração com valores ou interesses constitucionais de sentido contrário (no primeiro sentido, largamente dominante na jurisprudência do Tribunal Constitucional, vide os Acórdãos n. os 128/09, 617/12 e 85/13; no segundo sentido, com várias declarações de voto exprimindo reservas nesse ponto, v. o Acórdão n.º 171/17). Mas já não é de duvidar que a proibição da retroatividade fiscal tem como fundamento a tutela da confiança dos contribuintes, como tem sido reiteradamente afirmado na jurisprudência do Tribunal Constitucional. E daí resulta que as normas fiscais retroativas violam a proibição constitucional da retroatividade apenas nos casos em que frustrem as expectativas legítimas dos contribuintes, razão pela qual o artigo 103.º, n.º 3, não se aplica, por exemplo, às alterações da legis- lação fiscal que têm um impacto tributário positivo ou neutro. Muito mais difícil de aceitar, nos termos em que a acolhe, é a segunda premissa do argumento desenvolvido na decisão recorrida – a de que as leis genuinamente interpretativas não lesam expectativas legítimas, na medida em que consagram um dos sentidos possíveis da lei interpretada. As interpretações legislativas, como vimos, têm a natureza própria do poder de que emanam: não se destinam a dizer ou descobrir o direito vertido na lei interpretada, atividade que pressupõe uma competência jurisdicional, mas a privilegiar o sentido que o legislador entende politicamente mais vantajoso. Sem dúvida que os cidadãos destinatários das leis, designadamente de leis com uma vocação ablativa, não devem ter qualquer expectativa de que estas sejam, ou possam vir a ser, interpretadas no sentido que lhes é mais favorável; não existe, nem sequer nos domínios penal ou fiscal, um qualquer «princípio da interpretação mais favorável» ao cidadão. Mas têm a expec- tativa legítima, na qualidade de destinatários da lei, de formarem uma convicção sobre o direito nela vertido e de agirem com base nessa convicção jurídica – assim como, na eventualidade de se verificar um litígio, de recorrerem aos tribunais para que estes apreciem, no uso da autoridade jurisdicional que exclusivamente lhes cabe, e no âmbito de um processo de partes com igualdade de armas, o mérito jurídico do seu ponto de vista no caso concreto. Por outras palavras, os destinatários das leis têm a expectativa legítima de que estas sejam objeto de uma interpretação jurídica, porque é nesses exatos termos – enquanto sujeitos de direito – que aquelas se lhes dirigem. Ao consagra- rem um sentido por razões de ordem política – constitutivas e não declarativas de direito -, as leis interpretativas frustram essa expectativa legítima dos cidadãos na juridicidade, adversariabilidade e justiciabilidade da sua relação com a lei.

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