TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

95 acórdão n.º 49/20 Quanto ao primeiro aspeto, importa notar que, ao passo que a interpretação judicial tem por fundamento a autoridade jurisdicional dos tribunais – ou seja, a idoneidade destes para «dizerem o direito» ou «descobrirem o direito», nomeadamente o direito vertido nas leis -, a interpretação legislativa baseia-se na autoridade política do legislador, o mesmo é dizer, no facto de caber ao poder legislativo determinar o que é mais justo, conveniente ou oportuno para a comunidade. Quando um tribunal interpreta uma lei, nomeadamente uma lei ambígua, num certo sentido, o fundamento da decisão é a correção jurídica desse juízo; o tribunal afirma que determinado sentido é o sentido verdadeiro e originário da lei, de tal modo que as posições jurídicas – os direitos, os poderes, os deveres ou os ónus – por ele implicadas já se encontravam definidas no momento em que a lei entrou em vigor. É claro que os tribunais cometem necessariamente erros de interpretação e que a interpretação das leis é muitas vezes objeto de controvérsia; é ainda certo que, em muitas situações, os juízes têm dúvidas, por vezes insanáveis, sobre o sentido a dar às leis que interpretam. Mas ao decidir um caso em que se coloca um problema de interpreta- ção difícil e controverso, o tribunal atua, por necessidade funcional, no exercício de um poder estritamente jurisdi- cional – o de decidir qual o direito consagrado na lei. Já o legislador, não tendo qualquer competência jurisdicional, atua sempre com base na sua autoridade política, ou seja, com fundamento no seu título constitucional para deci- dir o que é melhor para a comunidade. Significa isto que, ao interpretar a lei num certo sentido, o legislador não se arroga a idoneidade de descobrir o direito nela vertido, mas o de fixar o sentido com que ela deve valer por razões de justiça, utilidade ou oportunidade sobre as quais só ele tem autoridade constitucional para decidir; os critérios da sua decisão são, por necessidade funcional, de natureza política e não jurídica. Esta divergência de fundamento entre interpretação legislativa e judicial traduz-se – e aqui reside o segundo aspeto da distinção – nos diversos processos através das quais uma e a outra são geradas. Na verdade, o processo judicial e o legislativo são estruturados em função da natureza do poder que através deles se exerce. Em virtude da sua natureza jurisdicional, a interpretação judicial é realizada por tribunais compostos por juízes independentes e com formação técnica específica, no âmbito de pedidos de pronúncia sobre questões concretas relativas às situações jurídicas das partes, e através de decisões fundamentadas proferidas a partir de uma posição de imparcialidade. Já a interpretação legislativa, cujo fundamento é a autoridade política do legislador, reveste a forma de ato legislativo aprovado por um órgão com legitimidade democrática para tomar decisões políticas; o titular por excelência desse poder é a Assembleia da República, em que as leis são elaboradas, discutidas e aprovadas pelos representantes eleitos pelo povo para decidirem os destinos da comunidade. O que de tudo isto resulta é que, por força do próprio postulado da distinção e separação entre autoridade legislativa e jurisdicional, traduzida na alteridade estrutural entre o processo legislativo e o judicial, as interpreta- ções do legislador são por natureza constitutivas, porque o juízo que lhes subjaz é de ordem essencialmente política, ao passo que as interpretações dos tribunais são por natureza declarativas, porque se baseiam exclusivamente na sua competência jurídica. E daí segue-se que, por definição, as leis interpretativas, mas já não as interpretações judiciais, são retroativas. 9. O tribunal a quo não impugna o caráter retroativo das leis interpretativas, nomeadamente da norma do artigo 88.º, n.º 20, do CIRC. Porém, argumenta que as normas fiscais (genuinamente) interpretativas situam-se fora do âmbito de aplicação da proibição constitucional da retroatividade dos impostos, na medida em que a inter- pretação fixada pelo legislador, por corresponder a um dos sentidos possíveis da lei, não lesa a confiança legítima dos contribuintes. Vale a pena recordar o passo relevante da decisão recorrida: “A proibição constitucional de retroatividade das normas criadoras de obrigações fiscais que se retira do n.º 3 do artigo 103.º da CRP visa obstar a violações legislativas do princípio da segurança jurídica, nas suas ver- tentes de certeza na orientação das condutas dos contribuintes e de segurança dos efeitos criados por situações já ocorridas. Na esteira da lição de Batista Machado, deverá entender-se que nas situações em que a interpretação que é dada na lei nova vem fixar uma das interpretações possíveis da lei antiga com que os interessados podiam e

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