TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

62 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL pouco adequado aos valores da função jurisdicional um sistema organizatório-judicial, no qual o tribunal determina da recorribilidade das suas próprias decisões” ( ibidem , p. 69).  Aqui reside, precisamente, o fundamento do direito de defesa e, de maneira mais específica, do direito ao recurso: o legítimo interesse em preservar a integridade do catálogo de garantias individuais que a ordem constitucional do nosso Estado de direito apregoa. Nas palavras de Germano Marques da Silva, “o interesse do arguido afere-se pelo sacrifício que a decisão para ele representa, ou seja, pela condenação” (Germano Marques Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 3.ª edição, Lisboa, 2009, p. 325). Sem que um recorrente, com exceção do regime próprio aplicável ao Ministério Público, possa reclamar tal interesse, ficam dimi- nuídos o poder de fiscalização dos tribunais e o direito dos cidadãos de se defenderem de uma condenação. 12. Nesta medida, o emprego de eventuais limites absolutos, em determinadas circunstâncias, à pos- sibilidade de interposição de recurso contraria o dever de prestação jurisdicional que impende sobre o Estado. Argumenta-se que tais limites são justificados, pois visam garantir o prazo razoável dos processos e o tempo útil das decisões e contribuem para a eficiência do sistema de justiça. São elementos atendíveis e que permitirão, em várias situações, um juízo de conformidade constitucional em relação a concretas limitações do direito de recurso. Ocorre, porém, que, se a tentativa de otimização do funcionamento dos tribunais passar pela supressão do acesso às vias de recurso e, assim, de uma das pedras angulares do Estado de direito, que é a tutela jurisdicional efetiva, então estaremos perante uma limitação do poder-dever dos tribunais para administrar a justiça. Da oposição entre o direito fundamental de acesso às vias de recurso e a eficiência da justiça não emerge um balanço de ponderação assente num conflito de valores jurídicos de igual alcance pela simples razão de que a segunda não subsiste sem o primeiro. Por esse motivo, deve a presente situação ser tratada como verdadeira restrição do direito fundamental ao recurso, plasmado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, e ser analisada à luz dos pressupostos constitucionais de admissibilidade de tais limitações.  Assim, analisando a questão das vias de recurso como pilar da tutela jurisdicional efetiva verifica-se que, mesmo antes de a parte final do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição ter sido aditada pela IV revisão consti- tucional, de 1997, autonomizando o direito ao recurso, tal garantia sempre esteve presente na jurisprudência do Tribunal Constitucional e assim permanece, como já sublinhado (cf., por todos, o Acórdão n.º 686/04, ponto 6). A sua consagração resulta do recrudescimento evolutivo dos mecanismos de defesa dos cidadãos, em especial da subordinação ao controlo judicial da atuação das esferas do Estado investidas dos poderes e das competências para investigar e punir os comportamentos qualificados como crime. Dessa maneira, a constrição penal sobre direitos, liberdades e garantias só é válida quando aos indivíduos é permitido reagir perante um tribunal, quer contra uma acusação em curso, quer contra uma posterior decisão que afete a sua esfera jurídica. Neste sentido, e significativamente, nada na Constituição estabelece uma indexação interna, no direito ao recurso, nos termos da qual o valor deste direito tenha mais peso quando o conteúdo de uma pena seja quantitativa ou qualitativamente mais ou menos grave, segundo critérios atinentes à intensidade da interfe- rência da condenação na esfera de direitos fundamentais de que cada pessoa é sujeito. Pelo contrário: o nível de proteção dos direitos fundamentais não comporta uma geometria variável que, em certos casos, faria a sua potência atingir a plenitude, mas, noutros, acarretaria uma proteção menos intensa. O standard de funciona- mento do Estado, em todas as suas instâncias, deve ser de um nível de proteção elevado, de forma a efetivar as garantias que o sistema constitucional determina. Consequentemente, o nível de proteção assegurado pelo direito constitucional ao recurso – no que res- peita à inconstitucionalidade da irrecorribilidade das condenações após absolvição em 1.ª instância – fixado pelo Acórdão n.º 595/18 aplica-se, mutatis mutandis , ao presente caso. Cabe apenas ajustar o perímetro do mesmo que incide sobre a ratio decidendi agora formulada, para incluir as penas de multa  e, com isso, dar coerência ao regime do direito fundamental ao recurso. Efetivamente, tratando-se de um direito essencial de

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