TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

606 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocor- rida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e) , do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição. Nesta decisão, sublinhou-se que a interpretação ali em causa “[deixava] livre de qualquer controlo parte da decisão condenatória” e assinalou-se a “restrição ou compressão do direito ao recurso, uma vez que resulta total- mente excluído da sua proteção o poder de recorrer de uma parte da decisão, precisamente aquela que acarreta o maior potencial de lesão dos direitos fundamentais do arguido”. No entanto, ficou bem claro – em diversos pontos da fundamentação do Acórdão – que a natureza da pena aplicada condicionava decisivamente o juízo de censura jurídico-constitucional formulado. Neste sentido, interessam as seguintes passagens: “[…] 21. […] Desta forma, além de deixar livre de qualquer controlo parte da decisão condenatória, a norma em apreciação implica uma intensa e grave restrição ou compressão do direito ao recurso, uma vez que resulta total- mente excluído da sua proteção o poder de recorrer de uma parte da decisão, precisamente aquela que acarreta o maior potencial de lesão dos direitos fundamentais do arguido. 22. Levado ao limite, este argumento poderia parecer impor a garantia da recorribilidade de qualquer decisão condenatória que se apresente como inovatória, independentemente da pena concretamente aplicada. Poder-se-ia argumentar que, num caso de condenação que reverte uma absolvição de 1ª instância, o direito ao recurso é tão afetado com a aplicação de pena de multa como com a aplicação da pena máxima de 25 anos de prisão. Um tal raciocínio ad consequentiam – que visa refutar a necessidade de recurso da condenação que, revertendo uma absolvição de 1.ª instância, aplica pena de prisão pelas supostas consequências indesejáveis que poderia acar- retar para a eficácia e celeridade do sistema de justiça penal ao implicar também o acesso ao recurso da condenação que, revertendo absolvição de 1.ª instância, aplica uma pena de multa – baseia-se, no entanto, num paralogismo inaceitável desde logo porque a restrição do direito ao recurso em ambos os casos não é equivalente. Existe, com efeito, uma diferença qualitativa entre a pena de prisão e todas as outras penas que deve ser relevada na verificação do respeito pelo direito ao recurso, enquanto garantia de defesa do arguido. Ignorar as particularidades da pena de prisão efetiva, é desprezar a correlação existente entre o direito fundamental ao recurso e os direitos fundamentais caracteristicamente restringidos pela pena, o que não pode ser aceite, já que é a gravidade da pena que se reflete na esfera pessoal do arguido. Quanto mais grave for a pena aplicada ( i. e. , quanto mais intensa for a potencial violação dos direitos fundamentais do arguido), maior necessidade existe de garantir o direito ao recurso – ou de, em compensação, contrabalançar a afetação da posição processual do arguido com a proteção de um interesse público igualmente valioso. Ora, a norma em apreciação, e que foi julgada inconstitucional pelo Acórdão n.º 429/16, refere-se à condenação em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos. Uma tal pena não pode considerar-se como uma pena de menor gravidade dentro do universo das penas abstratamente aplicáveis. Desde logo, porque a pena de prisão constitui a mais intensa restrição a direitos fundamentais admissível no ordenamento jurídico-penal português, comprometendo o valor da liberdade. Além de se revestir de uma conotação fortemente pejorativa por se encontrar associada a uma ideia de infâmia social o que a torna na pena mais estigmatizante de todas as sanções, não será excessivo lembrar que o cumprimento da pena de prisão - diferentemente de outro tipo de penas, designadamente não detentivas, implica inevitavelmente a ‘dessocialização’ do condenado que se vê forçado ao afastamento do meio familiar, pro- fissional e social. Independentemente de se poder ou não retirar do texto constitucional uma ordenação rígida de bens jurídicos, é incontestável que a Constituição dispensa uma tutela especialmente intensa ao direito à liberdade, que aprofunda o regime geral aplicável a todos os direitos fundamentais, contido no artigo 18.º. São reveladoras desta posição de destaque do direito à liberdade as disposições contidas nos artigos 27.º e 31.º da Constituição. Desta forma, a Constituição perspetiva a pena de prisão – qualquer pena de prisão – como uma restrição muito grave do direito à liberdade do arguido. Do princípio da preferência pelas reações criminais não privativas da liberdade, corolário

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=