TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

534 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Esta conclusão, todavia, não resolve a questão da necessidade de autorização do Governo para legislar nesta matéria, pois há que contar, ainda, com a possibilidade de um diploma se autoqualificar como “lei de bases” e com as consequências daí decorrentes em sede de competência legislativa do Governo. 2.3.5. O artigo 3.º, alínea i) , da LGTFP qualifica como “[…] normas base definidoras do regime e âmbito do vínculo de emprego público” os artigos 176.º a 240.º, sobre o exercício do poder disciplinar. Trata-se de uma qualificação genericamente coerente com a previsão da alínea t) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP. A qualificação representa “[…] um indício seguro da inclusão da matéria disciplinar no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de bases e âmbito do regime da função pública, assumindo a própria Lei por si emanada a fundamentalidade do regime normativo disciplinar (san- cionatório) na definição do regime estatutário – feixe de direitos e deveres – dos trabalhadores que exercem funções públicas” (Acórdão n.º 502/19, itálico acrescentado). É, pois, a própria Assembleia da República (legislador constitucionalmente habilitado a aprovar leis de bases) a qualificar as normas em causa como constituindo “bases”, sendo esta autoqualificação relevante, na medida em que as presunções de que o Tribunal Constitucional lança mão para o efeito operam, essencial- mente, “ no caso de a lei se não autoqualificar como tal ” (Acórdão n.º 620/07 – sublinhe-se, aliás, que a mesma decisão tem por relevante para a qualificação, designadamente, que “o Decreto n.º […], não [foi] emitido ao abrigo da alínea t) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, nem se [autodenomina] como uma lei de bases ”). É, pois, de aceitar a qualificação das normas contidas nos artigos 176.º a 240.º da LGTFP como cor- respondendo a “lei de bases”. Todavia, aceitar esta qualificação não significa ter como bem fundada a questão de inconstitucionali- dade suscitada, desde logo porque não está em causa a competência para aprovar as normas da LGTFP (que foram aprovadas por lei da Assembleia da República), mas sim a competência para aprovar a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro. Há, todavia, que determinar as consequências da autoqualificação no estreitamento da competência legislativa do Governo. 2.3.6. O artigo 224.º da LGTFP prevê, como vimos, que “os atos proferidos em processo disciplinar podem ser impugnados hierárquica ou tutelarmente, nos termos do Código do Procedimento Administra- tivo, ou jurisdicionalmente”. É sustentável que a expressão “ou jurisdicionalmente”, ali contida, apresente uma alternativa de meios impugnatórios das decisões disciplinares: impugnação administrativa (hierárquica ou tutelar, consoante o caso) ou jurisdicional. O artigo 224.º da LGTFP traduziria, então, uma opção legislativa “pela consa- gração em sede disciplinar de recursos administrativos meramente facultativos” [Paulo Veiga e Moura e Cátia Arrimar, Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, 1.º volume, Coimbra, 2014, p. 628; no mesmo sentido, Raquel Carvalho, Comentário ao Regime Disciplinar dos Trabalhadores em Fun- ções Públicas , Lisboa, 2014, p. 257, e Cristiana Cardoso Lopes, “Impugnações administrativas e reexercí- cio do poder disciplinar”, in Direito das Relações Laborais na Administração Pública, 2018, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebook_administrativo_fiscal.php ( e-book ), p. 719], o que, nessa perspetiva, seria confirmado pela previsão do n.º 1 do artigo 225.º da LGTFP (nos termos do qual, o trabalhador pode interpor recurso hierárquico ou tutelar da decisão em matéria disciplinar). Foi esse, aliás, o sentido em que a norma foi interpretada na decisão recorrida (cfr. item 2.1., supra ). E aceitando que a lei – que, como vimos, se autoqualifica como lei de bases, sendo essa autoqualificação relevante – incorporou a opção pelo caráter facultativo do recurso tutelar, então o Governo, sem autori- zação da Assembleia da República, poderia desenvolver o regime da impugnação administrativa e/ou da impugnação judicial mantendo a sua relação alternativa, ou seja, sem interferir com o caráter facultativo da impugnação administrativa, mas já não poderia alterar essa opção fundamental, pois que assim já não estaria a desenvolver o regime, mas sim a modificar o seu sentido.

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