TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

475 acórdão n.º 218/20 propriedade torna possível – aquela que consiste no governo privado de valores patrimoniais – é uma liberdade devida ao legislador ordinário, parece impor-se a conclusão de que o direito fundamental de propriedade é, no fim de contas, sobretudo um direito positivo a que o legislador promova o acesso a um qualquer regime de «propriedade privada», sujeito à condição constitucional única de que garanta a «transmissão em vida ou por morte» (artigo 61.º, n.º 1); daí a sua inclusão no catálogo do Título III. E se o legislador pode criar com tanta liberdade, com a mesma liberdade − praticamente total − pode conformar e modificar a sua criação. Não é assim. Quando a constituição entra em vigor – a nossa como qualquer outra numa democracia constitucional – já existe um regime de propriedade privada, uma ordenação jurídica da vida patrimonial, de modo que o suposto dever positivo do legislador não tem alcance prático nenhum. Ainda que tivesse, o direito de propriedade, ao contrário dos direitos a prestações continuadas como os cuidados de saúde ou a habitação social, impõe deveres positivos de execução instantânea: a aprovação de leis que, nos vários domí- nios da vida patrimonial, garantam o acesso à propriedade. O direito de propriedade tem, assim, evidentes afinidades com aqueles direitos de liberdade que incidem sobre bens constituídos por normas legais, como o direito ao juiz natural ou o direito a um processo equitativo. Uma vez constituídos tais bens, uma vez tornado possível o gozo da liberdade artificial em causa, o direito fundamental passa a incidir sobre um bem que já se encontra no poder do titular, passando a desempenhar a título principal a função clássica de defesa. As alterações ao regime, na medida em que afetem negativamente a posição dos sujeitos, são agressões do poder público e como tal devem ser enquadradas. É certo que o legislador goza de uma ampla liberdade de conformação política do regime legal da propriedade, nomeadamente quando altera a composição dos con- flitos de interesses dos sujeitos da vida patrimonial – v. g. , entre proprietários e possuidores, credores e deve- dores, lesantes e lesados, promitentes e promissários. Só que esta não é uma liberdade anómica, em virtude da indeterminação constitucional do direito de propriedade, mas uma liberdade radicada na legitimidade democrática do legislador para rever as opções legais vigentes, liberdade essa que, como a generalidade das restrições de direitos de defesa, é regulada e limitada pelo regime dos direitos, liberdades e garantias. Um dos aspetos mais salientes desse regime é a reserva de lei parlamentar consagrada na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. Se concebermos a dicotomia entre direitos de liberdade e direitos sociais a partir da distinção entre direitos predominantemente negativos e positivos, o único critério coerente e razoável, a divisão constitucional de competência legislativa em matéria de direitos fundamentais adquire uma pertinência luminosa. Por um lado, a função clássica da instituição parlamentar – democrática, repre- sentativa e deliberativa − é a proteção das liberdades contra os excessos do poder executivo; os direitos nega- tivos são reserva natural da lei formal em sentido estrito. Por outro lado, o processo histórico de alargamento da intervenção estatal nos domínios económico e social ditou a necessidade de um «legislador motorizado»; os direitos positivos têm a ganhar com esta possibilidade de produção normativa através de decretos. Na ordem constitucional portuguesa, esta divisão de competências tem a particularidade de respeitar ao próprio poder legislativo, visto que o Governo, para além de poder legislar mediante autorização da Assembleia da República, tem competência legislativa própria. Esta competência faz tanto mais sentido quanto diga res- peito a um domínio – os deveres constitucionais de facere – para o qual o executivo tem particular aptidão funcional. Sendo o direito de propriedade, nas suas principais dimensões, um direito análogo aos demais direitos de liberdade, um direito fundamental cuja função predominante é defensiva, é natural que boa parte da legislação que lhe diga respeito integre o domínio da reserva de competência estabelecida pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. Esta conclusão está de acordo com a noção clássica de que a matéria por excelência da reserva de lei é definida pela cláusula da «liberdade e propriedade», com particular incidên- cia nos domínios do direito penal, do direito fiscal, do direito de polícia e – para o que agora interessa − do direito civil. Está claro que o sentido da reserva de lei parlamentar não mais é o da oposição e do compro- misso entre a sociedade e o executivo, entre legitimidade representativa e dinástica, característicos das monar- quias constitucionais oitocentistas; os parlamentos e os governos são, nas modernas democracias, criaturas

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