TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020
474 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL em relação ao princípio da dignidade da pessoa humana é infirmada pela mais superficial leitura de ambos os catálogos de direitos fundamentais. Para que o critério axiológico de divisão fizesse sentido, seria necessário que todos os direitos de liberdade consagrados no Título II e poucos direitos sociais consagrados no Título III fossem recondutíveis de «modo imediato e essencial» à dignidade da pessoa humana. Ora, abstraindo da grande obscuridade do conceito de recondução «imediata e essencial» e dos equívocos associados a uma compreensão hierárquica dos direitos fundamentais, é impossível sustentar que o direito de acesso a dados informatizados (artigo 35.º, n.º 1), o direito de resposta e retificação (artigo 37.º, n.º 4) ou o direito de antena (artigo 40.º, n.º 1) têm uma carga axiológica tão grande ou maior, segundo a dignidade da pessoa humana, do que o direito à saúde (artigo 64.º), o direito à habitação (artigo 65.º) ou o direito à educação (artigo 73.º). A graduação axiológica é ainda mais absurda no domínio dos direitos dos trabalhadores, desde que, na revisão constitucional de 1982, estes foram repartidos entre os dois catálogos; a liberdade sindical (artigo 55.º) e o direito à greve (artigo 57.º) não são seguramente mais fundamentais do que o direito ao trabalho (artigo 58.º) ou os direitos consagrados no n.º 1 do artigo 59.º − todos eles participam do estatuto constitucional do trabalhador. Resta o critério estrutural, aquele que distingue direitos de defesa, diretamente invocáveis em juízo, pelo facto de salvaguardarem da agressão estatal bens que se encontram em poder do titular, de direitos positivos, de conteúdo relativamente indeterminado, que dependem da atividade de prestação dos poderes públicos. Só desta forma se pode compreender a existência de um regime específico dos direitos de liberdade diretamente aplicável aos demais direitos fundamentais que tenham natureza análoga. É claro que nem todas as dimen- sões ou faculdades dos direitos de liberdade constituem direitos de defesa – visto que compreendem também direitos a proteção estatal de «bens liberais» – e nem todas as dimensões ou faculdades dos direitos sociais constituem direitos positivos – visto que compreendem ainda os direitos de defesa de «bens sociais» em poder do titular. O mais que se pode dizer é que predomina nos direitos de liberdade a função defensiva e nos direitos sociais a função prestadora, de modo que o regime dos direitos, liberdades e garantias é diretamente aplicável por via de regra aos direitos de liberdade e excecionalmente aos direitos sociais – precisamente quando estes surgem nas vestes de direitos de defesa. Tudo isto sem prejuízo de tal regime se aplicar ainda, com as adaptações necessárias, sempre que logicamente possível e o princípio da unidade da constituição o reclamar, às dimensões ou faculdades positivas dos direitos fundamentais, sejam eles direitos de liberdade ou direitos sociais. O aresto rejeita que se trate neste caso da dimensão negativa, defensiva ou «clássica» do direito de pro- priedade, invocando para o efeito, se bem vejo as coisas, dois argumentos. O primeiro é o de que no direito de propriedade há que distinguir uma «dimensão subjetiva» de uma «dimensão institucional-objetiva», iden- tificando-se aquela com o direito a não ser privado da propriedade sem justa indemnização e esta com o dever estatal de conservar a instituição da propriedade privada. O segundo é o de que o direito de propriedade não tem densidade suficiente, a nível constitucional, para se projetar sobre a matéria do «estatuto obrigacional do sujeito passivo de uma relação creditícia». Estes argumentos não são inteiramente compatíveis um com o outro, na medida em que o segundo admite que o direito de propriedade possa desempenhar uma função defensiva para além da mera exigência de justa indemnização nos casos de requisição ou expropriação por utilidade pública, desde que o seu conteúdo tenha densidade constitucional suficiente. É o argumento mais promissor, superando a redução tradicional, que hoje se pode declarar largamente ultrapassada, da proteção constitucional da propriedade a uma garantia institucional que tem como único efeito jurídico proibir a abolição do gozo privado de bens patrimoniais. A noção de que a garantia constitucional da propriedade não tem densidade suficiente para determinar os regimes jurídicos da vida patrimonial, nomeadamente de direitos reais e das obrigações, baseia-se na cons- tatação evidente de que a propriedade é um artefacto jurídico. Trata-se, por outras palavras, de uma liberdade artificial, a que se contrapõem as liberdades naturais que incidem sobre bens cuja existência não depende do legislador, como a vida, a personalidade, a expressão, a manifestação ou a religião. Ora, se a liberdade que a
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