TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020
473 acórdão n.º 218/20 DECLARAÇÃO DE VOTO Vencido. O aresto parte da premissa, que não me merece nenhuma objeção, de que para concluir que a norma sindicada nos presentes autos invade a reserva relativa de competência da Assembleia da República em maté- ria de direitos, liberdades e garantias, estabelecida pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, é indispensável que se verifiquem dois pressupostos. Por um lado, que a sanção pecuniária compulsória legal, prevista no n.º 4 do artigo 829.º-A do Código Civil, constitua uma afetação negativa do direito de pro- priedade, garantido pelo n.º 1 do artigo 62.º da Constituição. Por outro lado, que a dimensão atingida do direito de propriedade tenha natureza análoga aos direitos de liberdade, segundo o previsto no artigo 17.º da Constituição, que manda aplicar aos direitos de natureza análoga o regime próprio dos direitos, liberdades e garantias. O juízo de não inconstitucionalidade da maioria baseia-se no entendimento de que nenhum destes pressupostos se verifica a respeito do objeto do presente recurso. Quanto ao primeiro pressuposto – diz-se −, sendo embora certo que, segundo jurisprudência constante, os direitos de crédito integram o conceito constitucional de propriedade, este não abrange os débitos ou as obrigações, que por natureza constituem desvantagens patrimoniais, nem os meios de tutela dos correlativos direitos de crédito, nomeadamente a penhora e, por igualdade de razão, a sanção pecuniária compulsória legal. Não acompanho este raciocínio. Ainda que se aceite que a penhora não constitui uma afetação negativa do direito de propriedade do devedor, por se tratar de um meio necessário de realização coativa da obrigação, sem o recurso ao qual a garantia geral dos créditos desvanece-se e as obrigações civis convertem-se em natu- rais, daí não se segue que a sanção pecuniária compulsória legal não tenha nenhum efeito ablativo que não esteja já contido no débito que integra o lado passivo do património do devedor. Assim é pela simples razão de que esta sanção, através da qual a lei reforça a tutela do credor, constitui um novo débito, uma desvanta- gem patrimonial que acresce ao passivo do devedor, sendo precisamente essa afetação patrimonial negativa o meio de adstringi-lo ao cumprimento. A igualdade de razão é de sentido exatamente contrário: se a desvalo- rização de um crédito pecuniário a uma taxa de 5% ao ano constituiria uma afetação negativa do direito de propriedade, como se depreende ser o entendimento da maioria, e como decorre inequivocamente do reco- nhecimento jurisprudencial de que os direitos de crédito integram o conceito constitucional de propriedade, é certo que também o será a oneração do património com um débito de idêntica espécie e valor. Na verdade, sendo o dinheiro um bem fungível, é indiferente falar-se de redução de créditos ou de acréscimo de débitos – trata-se, em todo o caso, da redução do património líquido do devedor. Tanto basta, no meu entendimento, para concluir que a sanção pecuniária compulsória legal constitui uma ablação da propriedade. Porém, o principal argumento da decisão diz respeito ao segundo pressuposto: o de que a dimensão do direito de propriedade atingido pela norma sindicada tenha natureza análoga aos direitos, liberdades e garan- tias. A maioria, louvando-se num lastro jurisprudencial significativo, entendeu que a analogia de natureza entre uma certa dimensão ou faculdade de um direito fundamental não incluído no catálogo de direitos, liberdades e garantias e os direitos neste compreendidos se estabelece a partir de dois índices ou critérios. O primeiro é axiológico: deve tratar-se de um direito ou faculdade recondutível de «modo imediato e essencial à dignidade da pessoa humana» ou indispensável à «realização do Homem como pessoa». O segundo é estru- tural: deve tratar-se de um direito radicalmente subjetivo, ou seja, de «direitos clássicos de defesa» que podem ser «diretamente invocáveis» em juízo. A maioria não chega a tomar posição sobre a questão de saber se estes critérios são alternativos ou cumulativos, porque conclui que em qualquer caso a norma sindicada não tem natureza análoga aos direitos de liberdade. Reconheço que o critério axiológico tem algum respaldo jurisprudencial, mas parece-me absolutamente insustentável. A noção de que a dicotomia constitucional entre direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais se pode basear na maior proximidade ou imediaticidade tendencial daqueles
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