TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

471 acórdão n.º 218/20 às projeções daquele direito que, por constituírem instrumento indispensável à concretização dos projetos de vida que cada um traça livremente, se apresentem «essenciais à realização do Homem como pessoa» (Acórdão n.º 329/99) ou, na formulação adotada no Acórdão n.º 374/03, denotem «“maior proximidade valorativa ao núcleo essencial da dignidade da pessoa humana”(Vieira de Andrade, obra citada , p. 194, nota 60) e da garantia da sua autonomia pessoal». No âmbito das relações obrigacionais – o único que aqui releva – , tal entendimento levou o Tribunal a considerar não incluída no âmbito da reserva de lei parlamentar decorrente da alínea b) do [n.º 1 do] artigo 165.º da Constituição a norma do Código Civil que veio atribuir ao «promitente-comprador beneficiário da tradição do prédio ou fração, de uma nova garantia», consistente no «direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do incumprimento do promitente-vendedor», por estar em causa uma «dimensão que não é indispensável à [...] conceção [do direito de propriedade] como garantia de “espaço de autonomia pes- soal” (Maria Lúcia Amaral, obra citada, p. 542) ou “essencial à realização do Homem como pessoa” (Acórdão n.º 517/99)» (Acórdão n.º 374/03). A segunda orientação que se extrai da jurisprudência constitucional diz respeito à estrutura típica das faculdades que integram o direito de propriedade suscetíveis de configurar-se como análogas às que integram os direitos, liberdades e garantias. Deste ponto de vista, do que se trata é de colocar em evidência «aquele “radical subjetivo” que [...] aproxima [o direito de propriedade] dos direitos fundamentais subjetivos de tipo clássico, negativos, diretamente invocáveis» (Parecer n.º 32/82 da Comissão Constitucional). Esta «dimensão de direito subjetivo», que se contrapõe à «dimensão institucional-objetiva» da garantia reconhecida no artigo 62.º da Constituição, é integrada «precisamente como direito “clássico” de defesa, [pelo] direito de cada um a não ser privado da sua propriedade senão por intermédio de um procedimento adequado e mediante justa compensação» (Acórdão n.º 421/09). 11. Na modalidade em que surge consagrada no n.º 4 do artigo 829.º-A do Código Civil, a sanção pecuniária compulsória – vimo-lo já – consiste num mecanismo coercivo destinado a compelir o dever ao cumprimento de obrigações de natureza pecuniária, decorrentes de fonte contratual ou extracontratual, que tenham sido, em qualquer dos casos, objeto de sentença condenatória transitada em julgado. Enquanto instrumento coercitivo destinado a induzir o devedor ao cumprimento da obrigação a que está adstrito e a acatar a condenação judicial, tal sanção – vimo-lo também – responde a um duplo objetivo: assegurar, por um lado, a pronta e efetiva concretização das decisões dos tribunais, e favorecer, por outro, o cumprimento de obrigações pecuniárias judicial e definitivamente reconhecidas. Ora, apesar de incidir sobre o património do devedor, pressupondo uma diminuição de valor pecuniá- rio coincidente com aquele que resulta da incidência da taxa legal, a sanção pecuniária compulsória devida pelo não cumprimento de obrigação reconhecida por sentença transitada em julgado não integra, à luz dos critérios identificados supra (ponto 10.), a garantia da propriedade privada na dimensão daquele direito fun- damental qualificável como análoga aos direitos, liberdades e garantias. Com efeito, ao prever o adicional de juros de 5% pelo incumprimento de obrigações pecuniárias decor- rentes de fonte contratual ou extracontratual, que tenham sido, em qualquer dos casos, objeto de sentença condenatória transitada em julgado, o n.º 4 do artigo 829.º do Código Civil não dispõe sobre qualquer posição subjetiva individual suscetível de gerar direta e imediatamente para o Estado um correlativo dever de abstenção; antes estabelece uma consequência patrimonial derivada do não cumprimento atempado de obrigações pecuniárias resultantes de decisão transitada, que se inscreve na conformação do estatuto obriga- cional do sujeito passivo de uma relação creditícia, o qual, por sua vez, se baseia necessariamente em regras de direito ordinário, que não podem ser automaticamente ultrapassadas através da invocação do direito de propriedade, designadamente no sentido que releva para afirmar a existência de um vício orgânico em face do que se dispõe na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. Por isso, se alguma dimensão o direito de propriedade tivesse que permitisse sujeitar à incidência do n.º 1 do artigo 62.º da Constituição os efeitos patrimoniais que a lei associa à condição de devedor inadimplente

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