TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

470 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL incluindo a faculdade da sua realização coativa à custa do património do devedor (neste sentido, vide ainda, Acórdãos n. os  349/91, 516/94, 374/03, 273/04, 620/04 e 178/07 e 235/11). A recondução dos direitos de crédito à garantia constitucional da propriedade leva em conta que os créditos são parte integrante do património do credor, constituindo-se como valor próprio e autónomo, suscetível, além do mais, de oneração ou de transmissão através de alienação ou por via hereditária. Ora, ao contrário do que sucede com os créditos, os débitos não constituem utilidades ou situações que envolvam uma vantagem de natureza patrimonial. Pelo contrário, resultam de um dever jurídico de prestar, que recai sobre o sujeito passivo da relação obrigacional em consequência de (e em correspondência com) um direito subjetivo à realização da prestação, que pertence ao credor. Por essa razão, pode, desde logo, duvidar-se da possibilidade de estender o âmbito da garantia cons- titucional da propriedade às posições jurídicas passivas de natureza creditória, pelo menos em termos que permitam discernir no n.º 1 do artigo 62.º da Constituição alguma dimensão de tutela do estatuto patrimo- nial do devedor, quer nos situemos ainda – como sucede no presente caso – no domínio dos mecanismos coercitivos destinados a incentivar o pontual cumprimento da obrigação, quer nos encontremos já na fase de realização coativa da prestação – como ocorreu na situação apreciada no Acórdão n.º 478/11 – , através do recurso à ação executiva, que a ordem jurídica faculta ao credor em caso de falta de cooperação do devedor, designadamente em virtude da ineficácia dos meios compulsórios acionáveis previamente. Confrontado, no referido aresto, com a questão de saber se o regime legal da penhora é constitucional- mente sindicável à luz do direito de propriedade do devedor, o Tribunal respondeu negativamente em termos que vale a pena recordar aqui: «[...] a penhora não deve ser considerada nem como uma violação nem como uma restrição do direito de pro- priedade constitucionalmente consagrado. Pelo contrário, o que se pode retirar do direito de propriedade é antes um direito do credor à satisfação dos seus créditos [...]». Da garantia constitucional da propriedade privada não parece poder retirar-se, assim, pelo menos com segurança, qualquer espécie de tutela da dimensão patrimonial do estado de sujeição ou subordinação que deriva do vínculo creditício, quer esteja em causa a satisfação coerciva do direito do credor à custa da execu- ção do património do devedor, quer se trate, ao menos por identidade de razão, da instituição de mecanismos coercitivos destinados a compelir o segundo ao cumprimento da obrigação, ainda que consubstanciando uma diminuição patrimonial de valor correspondente ao adicional devido pelo retardamento na realização da prestação. Mas ainda que assim não fosse – isto é, mesmo que se admitisse que a inclusão dos mecanismos de cobrança coerciva no âmbito dos direitos de natureza creditícia e destes no âmbito da garantia institucional da propriedade privada poderia constituir base suficiente para que nessa inclusão se considerassem igual- mente implicados os instrumentos coercitivos destinados a incentivar o devedor ao cumprimento célere de obrigações de natureza pecuniária – , tal conclusão seria sempre insuficiente para ter por verificada a invasão da reserva relativa de competência da Assembleia da República fixada na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. E isto na medida em que, conforme vem este Tribunal reiteradamente sublinhando, tal reserva apenas integra as normas relativas às dimensões do direito de propriedade privada que tenham natu- reza análoga aos direitos, liberdades e garantias. 10. OTribunal Constitucional dispõe de abundante jurisprudência quanto à caracterização do referente axiológico e à identificação do critério estrutural a partir dos quais poderão discernir-se no direito de pro- priedade dimensões de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Partindo sempre da ideia segundo a qual o direito de propriedade, na medida em que constitui «um pressuposto da autonomia das pessoas», «alguma dimensão terá [...] que permita a sua inclusão, pelo menos parcial, nos clássicos direitos de defesa» (Acórdão n.º 421/09), oTribunal vem reconhecendo natureza análoga

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=