TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020
441 acórdão n.º 182/20 Neste contexto, a verdadeira segurança reside na inteligibilidade e prestabilidade de todos meios dis- poníveis para assegurar que o processo interpretativo seja racionalmente ordenado à obtenção dos resulta- dos materialmente mais adequados – e logo, mais facilmente apreensíveis por qualquer pessoa dotada de mediana inteligência e sentido de justiça. Como tal, do mesmo modo que se entende que o princípio da legalidade não exige ao legislador que configure as normas fiscais de modo a possibilitar um cálculo exato e antecipado dos impostos a pagar, também não pode – nem é desejável – que dele se extraiam para o intérprete mais constrangimentos meto- dológicos do que aqueles que, em cada momento, se têm como válidos e aptos a suportar a interpretação da lei fiscal. Conforme se torna neste momento particularmente claro, a interpretação corretiva da lei fiscal não é, em si mesma ou em toda a sua extensão, necessária e automaticamente incompatível com o princípio da legalidade tributária. Independentemente de qual deva ser o exato recorte do domínio correspondente às modalidades de interpretação corretiva vedadas pelo princípio da legalidade fiscal, ou do preciso ponto em que a sua fronteira deva ser em definitivo traçada, é inequívoco que a violação de tal princípio não ocorrerá nas hipóteses em que a interpretação corretiva da lei tenha servido apenas para afastar ou excluir o sentido que mais imediatamente decorreria da relevância gramatical do enunciado em benefício daquele que, apesar de corresponder a uma utilização menos imediata dos elementos linguísticos em causa, o texto da lei não exclui de forma categórica ou inequívoca. Posto é que, como seguidamente se verá, tanto ao contribuinte como à administração fiscal seja assegu- rada a possibilidade de, com base na convicção jurídica que formaram sobre o sentido da lei, o disputarem perante um tribunal, para que este aprecie e decida, no uso da autoridade jurisdicional que exclusivamente lhe cabe e no âmbito de um processo de partes com igualdade de armas (cfr. os Acórdãos n. os 395/17 e 49/20), qual o resultado interpretativo que deve prevalecer em função da diretiva hermenêutica selecionada e, por isso, subjacente ao seu processo de evidenciação. Assim, ainda que se entendesse que o princípio da legalidade fiscal vincula o intérprete, em qualquer circunstância, a manter-se aquém do limite interpretativo traçado pelo mínimo de correspondência verbal, não mereceria censura, à luz do princípio da legalidade fiscal consagrado no n.º 2 do artigo 103.º da Cons- tituição, a interpretação dos n. os 1 e 2 do artigo 9.º do Código Civil no sentido propugnado pela decisão recorrida, que constitui o objeto do presente recurso. 19. A conclusão de que a norma sobre interpretação, extraída pelo tribunal recorrido do artigo 9.º do Código Civil, não é incompatível com o princípio da legalidade tributária permite antecipar o resultado da sua confrontação com os demais princípios paramétricos invocados pelo recorrente. Se a interpretação corretiva da lei não implicar – como não implica de modo necessário – a criação de um critério normativo de resolução do conflito verdadeiramente inovador, sem o mínimo de adesão, ainda que imperfeita ou incompleta, ao texto interpretando, não se vê como possa ser afrontada a proibição da retroatividade fiscal (artigo 103.º, n.º 3, da Constituição), a qual, constituindo, ela própria, uma refração do princípio da legalidade fiscal, justamente supõe que a norma tributária disponha para o passado, prevendo a tributação de atos praticados quando ela ainda não existia (cfr. Acórdão n.º 85/13). Do mesmo modo, também não se vê como possa configurar-se uma violação do princípio da separação de poderes (artigo 111.º, n.º 1, da Constituição), sobretudo se se tiver em conta que, no domínio em que nos situamos, tal princípio é concretizado tanto através da subordinação exclusiva dos tribunais à lei (artigo 203.º), como da reserva da função jurisdicional (artigo 202.º, n. os 1 e 2). Entendida a referência à lei, que consta do artigo 203.º da Constituição, não como uma alusão ao «direito criado por lei», mas como uma «referência desenvolvida ao Direito» – é essa, de resto, a conceção hoje dominante (Miranda, J./Medeiros R., Constituição Portuguesa Anotada, Vol. II, cit., pp. 238 e seguin- tes) –, mais facilmente se compreenderá ainda que subordinação exclusiva à lei e reserva da função jurisdi- cional convirjam, na verdade, num único e mesmo sentido: se a « iurisdictio ou função de “dizer o direito”
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=