TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

435 acórdão n.º 182/20 margem para adotar as soluções tidas por metodologicamente mais adequadas, preocupação esta, aliás, expressamente assumida pelos autores do projeto: segundo explicou Antunes Varela ao apresentar o Código, este pretendeu ser «prudente e comedido»; assim, «a nova lei limitou-se a recolher uns tantos princípios que considerou aquisições definitivas da ciência jurídica, sem curar grandemente da sua origem doutrinária. Em tudo o mais, no dizer do Doutor Andrade, houve o propósito de deixar o “campo livre para a atividade da doutrina, em problema de tanta complexidade e transcendência que perigoso seria tentar solucioná-lo de uma vez para sempre.”» (vide o discurso de apresentação, citado supra , p. 766). Já no que respeita aos resultados da interpretação, a teoria tradicional tendia a distinguir apenas as inter- pretações declarativa, enunciativa, extensiva e restritiva, admitindo a interpretação ab-rogante somente em caso de insuperável antinomia entre o preceito interpretado e uma outra regra de direito positivo (vide, v. g. , Castro Mendes, João, Introdução ao Estudo do Direito, Danúbio Edição, Lisboa, 1984, pp. 252-255; Ferrara, Francesco, Interpretação e Aplicação das Leis , cit., pp. 147-154). Só com a reconfiguração do valor da letra da lei – à qual passa a atribuir-se um valor heurístico ou indiciário e já não normativo (cfr. Heck, Philipp, Interpretação da Lei e Jurisprudência dos Interesses, Arménio Amado Editor, Coimbra, 1947, pp. 129 e seguintes) – se torna possível pensar em resultados como a inter- pretação corretiva. Tal como refere Castanheira Neves, «[c]om a acentuação da interpretação teleológica, os resultados da interpretação enriqueceram-se de outros tipos de grande relevo prático, e que têm de comum o aceitarem já a preterição do texto a favor do cumprimento efetivo da intenção prático-normativa da norma. É o que se verifica com a interpretação corretiva, inicialmente proposta pela «jurisprudência dos interesses» e depois geralmente aceite (…).» (Castanheira Neves, A., Digesta – Escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, Vol. 2.º, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 367-368). O Código Civil português não contém, todavia, qualquer definição de interpretação corretiva, nem tão- -pouco proporciona, a partir do regime de interpretação da lei que estabelece no seu artigo 9.º, uma resposta consensual à questão de saber se um tal resultado interpretativo pode ser admitido no ordenamento jurídico por- tuguês. Tudo depende, conforme se verá de seguida, daquilo que vier a entender-se por interpretação corretiva. 14. À questão de saber se é possível – ou exigível até –, à luz do Código Civil, proceder a uma interpre- tação corretiva da lei – no caso, da lei fiscal –, sem afrontar a Constituição, pode responder-se de modo assi- nalavelmente diferente consoante a caraterização desse resultado interpretativo que em definitivo se adote, bem como da posição que se perfilhe quanto à função negativa do sentido literal da lei. Ainda que em termos simplificados, é possível identificar duas perspetivas que claramente se opõem na resposta ao problema. Mais próxima da proposta metodológica que esteve na génese do conceito, é a perspetiva segundo a qual é corretiva a interpretação que sacrifica o elemento literal da lei, com vista à realização, no caso concreto, do sentido normativo e prático da prescrição. Assim, a interpretação corretiva não implica, necessariamente, que à lei seja atribuído, em resultado do processo hermenêutico, um sentido que se afirme substancialmente praeter ou contra legem . Pelo contrário, em linha com a proposta de Philipp Heck e da Jurisprudência dos Interesses, reafirma-se a importância da obediência à lei, mas pugna-se por uma obediência pensante ou inteligente, reconhecendo-se que, perante as especificidades do caso concreto, pode impor-se ao intérprete a necessidade de atribuir aos comandos legais um sentido que não encontra no seu teor verbal evidente res- paldo. É o que sucede – seguindo o exemplo da vida corrente com que Heck ilustra o seu raciocínio – com o oficial de artilharia que recebe ordem de ataque ao inimigo: sempre que este perceba que o alvo já se encontra tomado pelo seu próprio exército ou pelas tropas aliadas, não pode deixar de corrigir o comando recebido em conformidade (Heck, Philipp, op. cit. , p. 209). De igual modo, quando uma regra prescreve que «é proibida a entrada a cães» pode tornar-se evidente que a lei não pretendeu proibir a entrada de cães guias, mas quis inequivocamente que a proibição abrangesse a entrada de iguanas de estimação. Por se tratar de uma correção evidentemente razoável e necessária para tornar efetivo, na prática, o ver- dadeiro sentido da norma, este é um resultado geralmente aceite (ainda que por vezes mereça a designação de interpretação teleológica ou de interpretação extensiva ou restritiva – vide, v. g. , Galvão Telles, Inocêncio ,

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=