TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

434 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL jurídica a sua reconhecida singularidade, confronta permanentemente o intérprete com a complexa tarefa de alcançar a regra apta a solucionar o caso concreto através da ponderação do conjunto daqueles elementos. Sem conceder que a interpretação jurídica possa restringir-se a uma leitura enunciativa do conteúdo da fonte interpretanda, o Código Civil acolheu claramente a preponderância da letra da lei não apenas como ponto de partida da interpretação, mas também como critério decisivo de exclusão ou de limite intranspo- nível das possibilidades de interpretação – trata-se da designada dimensão ou função negativa da letra da lei, que o n.º 2 do artigo 9.º consagra –, conferindo simultaneamente primazia ao sentido interpretativo mais condizente com o significado mais usual das expressões constitutivas do texto interpretando. Nesta última aceção – correspondente à dimensão positiva do texto da lei e concretizada na presunção de que «o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (cfr. o n.º 3 do artigo 9.º – vide, também, Andrade, Manuel, “Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis” in Ferrara, Francesco, Interpretação e Aplicação das Leis, 2.ª edição, Arménio Amado Editora, Coimbra, 1963, pp. 64-65) –, a letra afirma-se como principal critério de seleção dos sentidos possíveis da interpretação; isto é, «se a lei admitir várias interpretações, mas uma delas corresponder ao sentido natural dos seus termos, ao passo que as outras assentam sobre um entendimento bastante mais forçado, é a primeira que o jurista deve como regra preferir» (tal como esclareceu Antunes Varela, no discurso de apresentação do Código Civil, dirigido à Assembleia Nacional em 26 de novembro de 1966 – in Diário das Sessões da Assembleia Nacional, n.º 43, p. 765, dispo- nível em http://debates.parlamento.pt ). A par desta dupla função atribuída ao elemento literal, o Código Civil não deixou de vincular o intér- prete a uma segunda presunção, a ter em conta na fixação do sentido e alcance da lei: a de que o legislador, presumidamente racional, sabedor e sensato, «consagrou as soluções mais acertadas» (artigo 9.º, n.º 3). Deste modo, o Código Civil abriu caminho à ponderação da teleologia da norma e do respetivo contexto siste- mático, tomado a partir da unidade do sistema jurídico (cf. o n.º 1 do artigo 9.º) na respetiva congruência axiológica; viabilizou a adoção de interpretações atualistas, ainda que sem deixar de atender às circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada; e, por último, ao exigir apenas um mínimo de correspondência verbal, concedeu ao intérprete as mais amplas possibilidades de interpretação, que a preponderância do elemento literal, na sua função negativa, consente ou tolera. Por ser aquele que mais diretamente releva para o problema de constitucionalidade que integra o objeto do recurso, detenhamo-nos um pouco mais sobre este último aspeto. 13. Admitindo-se, sempre no quadro da teoria tradicional da interpretação da lei, que é possível esta- belecer uma distinção entre a exigência de que a interpretação se confine ao sentido literal possível da fonte interpretanda e a exigência de que a interpretação encontre na letra da lei uma alusão ou um mínimo de correspondência verbal, impõe-se recordar que a primeira atribui à letra da lei uma função delimitadora significativamente mais acentuada. Assim, segundo Karl Larenz, o «sentido literal a extrair do uso linguístico geral ou, sempre que ele exista, do uso linguístico especial da lei ou do uso linguístico geral, serve à interpretação, antes de mais, como uma primeira orientação, assinalando, por outro lado, enquanto sentido literal possível (…) o limite da interpre- tação propriamente dita.» ( Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997, p. 457). Além desse limite dado ao intérprete pelo uso linguístico mais imediato ou usual das palavras da lei, começaria o «desenvolvimento do Direito», o qual, «conduzido metodicamente para além deste limite, mas ainda no quadro do plano originário, da teleologia da lei em si, é preenchimento de lacunas, desenvolvimento do Direito imanente à lei (…).» ( ibid ., p. 520). Diversamente, ao traçar o limite da interpretação no sentido, ainda que imperfeitamente expresso, que encontre na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, o legislador português optou por alargar as possibilidades de interpretação a todos os sentidos que, embora menos comuns ou imediatos, não sejam excluídos pelo teor verbal da lei interpretanda. As opções consagradas no Código, reveladoras do estado da arte ao tempo em que a lei foi elaborada, não ocultam o cuidado de conceder aos intérpretes a necessária

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