TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

420 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL da legalidade fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição, que constitui a questão central a decidir no presente recurso. III - Se a recorrente não poderia deixar de contar com a possibilidade de o preceito constante do n.º 2 do artigo 90.º do CIRC, designadamente da sua alínea b) , vir a ser interpretado no sentido em que o foi, já não lhe era exigível antecipar que a prevalência desse resultado interpretativo viesse a encontrar o seu único e exclusivo ponto de apoio ou referência nos critérios de interpretação da lei fiscal extraí- dos dos n. os 1 e 2 do artigo 9.º do Código Civil, que permitiram ao tribunal recorrido adotar uma interpretação designada como corretiva do enunciado aplicável; a aplicação pelo tribunal arbitral da norma sindicada dispõe, segundo critérios de razoabilidade e adequação, de um carácter suficiente- mente imprevisível ou surpreendente para justificar a dispensa do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade em momento anterior à prolação do acórdão recorrido, improcedendo todos os argumentos invocados contra a admissibilidade do presente recurso. IV - Na medida em que a norma interpretada no caso dos autos – o n.º 2 do artigo 90.º do CIRC – era tida como relevante para a determinação do quantum do imposto a pagar, em resultado da aplicação das taxas de tributação autónoma, não se vê como deixar de reconhecer que possa ser qualificada como uma norma de incidência (em sentido amplo), abrangida pelo n.º 2 do artigo 103.º da Constituição; para dar resposta adequada à questão de constitucionalidade colocada nos presentes autos importa perceber se e em que medida o juiz se encontra vinculado, por força do princípio da legalidade fiscal, a observar especiais regras interpretativas – que excluam, designadamente, a possibilidade de corrigir interpretativamente uma norma determinante do quantum do imposto a pagar. V - Através das disposições do artigo 9.º foram incorporados no nosso Código Civil os principais pos- tulados da chamada teoria tradicional da interpretação jurídica; sem conceder que a interpretação jurídica possa restringir-se a uma leitura enunciativa do conteúdo da fonte interpretanda, o Código Civil acolheu claramente a preponderância da letra da lei não apenas como ponto de partida da interpretação, mas também como critério decisivo de exclusão ou de limite intransponível das pos- sibilidades de interpretação – trata-se da dimensão ou função negativa da letra da lei, que o n.º 2 do artigo 9.º consagra –, conferindo simultaneamente primazia ao sentido interpretativo mais con- dizente com o significado mais usual das expressões constitutivas do texto interpretando; todavia, o Código Civil português não contém qualquer definição de interpretação corretiva, nem tão-pouco proporciona, a partir do regime de interpretação da lei que estabelece no seu artigo 9.º, uma res- posta consensual à questão de saber se um tal resultado interpretativo pode ser admitido no orde- namento jurídico português. VI - À questão de saber se é possível – ou exigível até –, à luz do Código Civil, proceder a uma interpreta- ção corretiva da lei – no caso, da lei fiscal –, sem afrontar a Constituição, pode responder-se de modo assinalavelmente diferente consoante a caraterização desse resultado interpretativo que em definitivo se adote, bem como da posição que se perfilhe quanto à função negativa do sentido literal da lei, sen- do possível identificar duas perspetivas que claramente se opõem na resposta ao problema, mas que permitem a seguinte conclusão: não é pelo mero facto de assim se designar (ou vir designada) que a interpretação corretiva da lei se converterá direta, necessária e automaticamente num procedimento ou resultado hermenêutico proscrito pela Constituição – desde logo pelo princípio do Estado de direito democrático, e, no caso de se tratar da interpretação da lei fiscal, ainda (ou especialmente) pelo princípio da legalidade fiscal, consagrado no n.º 2 do artigo 103.º da Lei Fundamental.

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