TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

386 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL a interpretação normativa que, de uma forma inovatória e surpreendente, determina a imposição às partes de exigências formais que elas não podiam razoavelmente antecipar, sendo o desculpável incumprimento sancionado em termos irremediáveis e definitivos; de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, a possibilidade de controlo, através de um juízo de proporcionalidade, da imposição de ónus às partes, também é aplicável no âmbito do direito ao recurso em processo penal. III - No que respeita à situação dos autos, a exigência de apresentação pelas partes das peças processuais por um dos três meios previstos no artigo 144.º, n. os 7 e 8, do Código de Processo Civil (entrega na secretaria judicial, remessa por correio, sob registo ou através de telecópia) é justificada; trata-se de uma exigência funcionalmente adequada aos fins, não podendo afirmar-se que se trata de uma imposição arbitrária sem qualquer sentido útil para a tramitação processual; por outro lado, não se trata, manifestamente, de um ónus particularmente gravoso ou difícil de satisfazer por parte do recorrente. IV - No entanto, a interpretação normativa que nos ocupa neste processo abrange não o ónus, em si, mas o desvalor jurídico com que se comina o seu incumprimento: neste caso, a nulidade do recurso; a consequência jurídica da inobservância de um meio de comunicação do ato – requisito formal – não se encontra expressamente prevista na letra do texto legal e, ao tempo da prática do ato afigurava- -se controverso determinar, com a devida segurança, qual o regime jurídico aplicável à apresentação do requerimento de recurso, em sede de processo penal: por um lado, no Código de Processo Penal subsistia a inexistência de norma reguladora; por outro lado, a profusão e sucessão, de disciplinas legais gerou tal dúvida interpretativa que levou o Supremo Tribunal de Justiça, perante a existência de arestos de teor contraditório, a prolatar um acórdão uniformizador de jurisprudência, o qual, no entanto, acabou por não pôr termo, em definitivo, à controvérsia, face à aprovação posterior de um novo Código de Processo Civil. V - No caso dos presentes autos, existiam dúvidas razoáveis sobre qual a via imposta pelo texto legal para a apresentação do requerimento de recurso, mesmo que os interessados atuassem de acordo com os deveres de uma conduta processual diligente e observassem os ditames de prudência técnica, sendo neste enquadramento que devemos analisar a norma que qualifica como nula a apresentação (den- tro do prazo) do requerimento de recurso através de correio eletrónico – num cenário de incerteza interpretativa –, o que tem como consequência inexorável a sua rejeição por extemporaneidade, pois apenas viria a ser considerada a data da apresentação dos duplicados (já fora do prazo); a sanção do não recebimento do recurso é determinada, de uma forma inovatória e surpreendente, sem que seja dada aos recorrentes uma específica oportunidade para cumprir o ónus em causa, sendo o incumpri- mento sancionado em termos irremediáveis e definitivos, privando o arguido de exercer o seu direito ao recurso. VI - A garantia da via judiciária estatuída no artigo 20.º da Constituição, conferida a todos os cidadãos para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, abrange não só a atribuição do direito de ação judicial, mas também a garantia de que o processo, uma vez iniciado, deve seguir as regras de um processo equitativo; a imposição de um ónus que não resulta claro perante a letra de lei, sendo por isso de difícil cumprimento pelas partes, cuja inobservância é a perda imediata e irre- mediável de um importante direito de defesa processual, como é o direito ao recurso, não respeita o processo justo; no domínio penal, onde nos movemos, o direito ao recurso tem especial proteção constitucional, como garantia de defesa, nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=