TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020
294 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Facilmente se reconhece que as previsões das várias alíneas do n.º 2 do artigo 186.º não formam um bloco absolutamente homogéneo, quanto ao sentido tutelador: enquanto que as das alíneas a) a g) se reportam dire- tamente a atos de gestão que é de presumir terem concorrido materialmente para a situação de insolvência (ou para o seu agravamento), as das alíneas h) e i) têm outro cariz. Incidem sobre formas de incumprimento que produzem ou podem produzir “efeitos de ocultação” sobre a real situação patrimonial e financeira do devedor, com todos os riscos que tal coenvolve, dificultando ainda uma atuação célere e eficaz do administrador da massa insolvente. Reitera-se, todavia, que “insolvência culposa” é uma categoria normativa, a que corresponde um regime próprio, que genericamente se pode caracterizar como punitivo e dissuasor de práticas violadoras de deveres funcionais dos administradores. Nesta ótica, o que há a ajuizar é se as formas de incumprimento previstas na alínea i) merecem ou não ser sancionadas com as medidas que têm essa qualificação por pressuposto, ou, dito de outro modo, se elas, para esse efeito, podem ser tratadas como insolvência culposa, sem desconformidade com os princípios da igualdade e da proporcionalidade. É nesta perspetiva que analisaremos a questão. 6. Ressalta da previsão da alínea i) , como imediata nota distintiva das restantes previsões de factos igual- mente abrangidos pelo regime da insolvência culposa, o diferente período temporal que baliza os incumpri- mentos a considerar. Todos os outros factos têm como termo ad quem o início do processo de insolvência, ao passo que os da alínea i) são necessariamente posteriores a essa data, podendo verificar-se “até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º”. Os deveres de apresentação e de colaboração recaem, nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 83.º do CIRE, sobre o devedor insolvente, pelo que nascem e devem ser cumpridos no decurso do processo de insolvência. Mas isso não implica uma diversidade de natureza tal que leve a rejeitar, por imperativo do princípio da igualdade, a uniformidade de tratamento. Do ponto de vista valorativamente relevante, e no plano funcional dos interesses a tutelar, não há diferença substancial entre prevenir atos geradores da situação de insolvência, caracterizadamente censuráveis e ilícitos (e puni-los, uma vez praticados) e, após essa situação estar criada, prevenir e punir omissões que, para além de dificultarem ou obstaculizarem o regular andamento do processo, podem conduzir a um agravamento da insolvência. Ademais – há que frisá-lo – a falta aos deveres de apresentação e de colaboração pode não resultar de um simples alheamento do processo, de desinteresse ou negligência, mas antes da intenção deliberada de não con- correr para o conhecimento de factos anteriores ao início do processo de insolvência que levariam à qualificação da insolvência como culposa, à luz de qualquer das restantes previsões. Como salienta o Ministério Público, um comportamento não colaborante do obrigado dificulta ou impossibilita “o conhecimento de factos relevantes e essenciais para a qualificação da insolvência”, pelo que, a não ser sancionado por uma norma como a da alínea i) , poderia impedir a justificada aplicação do regime que cabe à insolvência culposa. Nessa medida, essa norma apresenta uma relevante conexão de sentido com as restantes do n.º 2 do artigo 186.º, posicionando-se, se assim se pode dizer, como “norma de salvaguarda” da efetividade aplicativa daquele regime – o que justificará a sua integração sistemática no preceito. Não se descortina, pois, qualquer violação do princípio da igualdade. 7. O mesmo se diga quanto ao princípio da proporcionalidade. Outras formas de prevenção e punição se poderiam, decerto, conceber. Mas, dentro da opção de base do legislador, não arbitrária ou irrazoável, de obrigar a uma qualificação da insolvência como fortuita ou culposa, para fazer decorrer desta última efeitos sancionatórios, não se visiona, pelo menos com a evidência exigível, que a solução legislativa impugnada não apresente suficientes credenciais de observância das exigências de adequa- ção, indispensabilidade e respeito pela justa medida, contidas no princípio da proporcionalidade. As consequências associadas à insolvência culposa, e muito em particular a inibição para o exercício do comércio durante um certo período, mostram-se perfeitamente ajustados à gravidade e natureza das faltas cometidas. Tendo-se gerado uma situação de insolvência, já de si lesiva dos interesses creditórios e do comér- cio jurídico, em geral, é elementar dever dos administradores adotarem uma conduta leal e cooperante, por
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