TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020
293 acórdão n.º 136/20 prova de factos desculpabilizantes. Para além disso, o n.º 3 do mesmo artigo estabelece uma presunção relativa de culpa grave, exigível, em alternativa ao dolo, nos termos do n.º 1. A qualificação da insolvência como culposa desencadeia relevantes consequências jurídicas, desvantajosas para as pessoas afetadas pela qualificação (obrigatoriamente identificadas na sentença – alínea a) do n.º 2 do artigo 189.º). Pondo de lado a inabilitação, dado que a norma que a prevê – a alínea b) deste preceito − já foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão n.º 173/09, são elas a inibição para o exercício do comércio, referida na alínea c) , e a perda de créditos (ou a obrigação de restituição de bens ou direitos recebidos em pagamento desses créditos) sobre a insolvência ou a massa insolvente [alínea d) ], bem como a inaplicabilidade do regime de exoneração do passivo restante [alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º], de que poderia beneficiar o devedor pessoa singular ( a quem pode ser extensível o regime dos n. os 2 e 3 do artigo 186.º, nos termos do n.º 4 da mesma disposição). 4. No presente recurso, está em causa a norma da alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º, segundo a qual se considera sempre culposa a insolvência do devedor (que não seja uma pessoa singular), quando os seus admi- nistradores, de direito ou de facto, tenham incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º, ou seja, o parecer que o administrador da insolvência apresenta com a proposta de qualificação da insolvência. Ficou provado, nos presentes autos, que o sócio-gerente da insolvente, aqui recorrido, «não prestou qual- quer informação ao administrador para a elaboração do parecer, designadamente, não entregando os documen- tos contabilísticos a que se refere o artigo 24.º, n.º 1, do CIRE, nem, à data, informou os autos de qualquer dado relevante quanto às causas da insolvência nem para eventual liquidação da massa insolvente». (...) 5. [A] recusa de aplicação da norma da alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE fundou-se, basicamente, na ideia de que a qualificação da insolvência como culposa só pode ter como referência previsional a violação de deveres de conduta dos administradores a que seja imputável a criação ou agravamento dessa situação, logo, determinadas formas de comportamento anteriores ao início do processo de insolvência. Sujeitar a essa mesma consequência a omissão de deveres que só nascem após a declaração de insolvência – como tal, sem influência causal no seu surgimento − representaria uma violação do princípio da igualdade e acarretaria a imposição de sanções não condizentes com o princípio da proporcionalidade. Diga-se, antes de mais, que a afirmada falta de causalidade, em relação à insolvência, do incumprimento dos deveres de apresentação e de colaboração só parcialmente é de verificação certa. Na verdade, se é indiscu- tível que essa situação nunca pode ser criada por tal conduta, já há que admitir, como oportunamente assinala o voto de vencido, que ela possa ser agravada em resultado desse comportamento. Designadamente, a falta de cumprimento aqui concretamente em juízo, a saber, a não entrega, ao administrador, dos documentos conta- bilísticos a que se refere o artigo 24.º do CIRE, é de molde a obstaculizar uma identificação correta da situação patrimonial do devedor, em prejuízo da massa insolvente. Independentemente desta consideração, cumpre advertir que a questão é de valoração jurídica, pelo que não deve ser apreciada num puro plano logicista de apreensão de uma ordem natural das coisas e dos nexos cau- sais que entre elas se estabelecem. Ora, a nosso ver, o acórdão recorrido não está imune a esta precompreensão falseadora, como se revela, com particular evidência, no seguinte trecho: «Com efeito, aquilo que faz sentido no contexto em apreço é que a culpa seja aferida relativamente a um momento anterior àquele em que se inicia o processo em que ela vai ser apreciada. Não é coerente que a insolvência, já declarada, possa ser considerada culposa em virtude da atuação do devedor, no processo de insolvência e após tal declaração». Daqui retira a decisão recorrida a conclusão de que a norma «introduz um inaceitável desequilíbrio no sis- tema», e isto porque determina que a insolvência seja tida como culposa por força de «algo que, por necessidade lógica [itálico nosso], nenhuma influência pode ter tido naquele decretamento».
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