TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

269 acórdão n.º 134/20 exploração de uma situação de vulnerabilidade da pessoa que se prostitui continua a não pressupor a ausência de acordo dessa pessoa à prática de tais atos, pelo que, neste específico ponto, não há diferença sensível entre a vigente redação deste tipo legal de crime e aquela que a precedeu, a qual estabelecia já um crime de perigo abstrato. A diferença é, essa sim, que a redação precedente procurava estabelecer um nexo causal entre a con- duta típica e a ofensa ao bem jurídico – se ele era ou não suficiente para assegurar a sua constitucionalidade é questão que aqui não releva, pois não é essa a norma sob fiscalização -, enquanto a redação atual resiste a qualquer tentativa de identificação de um nexo dessa natureza (nos termos explanados supra , no ponto 13). Já se disse que o recurso à técnica do perigo abstrato na criminalização de comportamentos não está, por princípio, constitucionalmente vedado. O ponto que se procura agora fazer é o de que os crimes de perigo abstrato, já de si adstritos a especiais condições constitucionais quando comparados com os crimes de dano e os crimes de perigo concreto – onde a ofensa ao bem jurídico é, respetivamente, certa ou mais próxima – são ainda mais difíceis de sustentar quando estejam em causa bens jurídicos suscetíveis de acordo, como a liberdade sexual. Se o acordo do portador, mais do que tornar lícita a conduta do terceiro, a convoca à realização do bem jurídico, o legislador, ao criminalizar um comportamento em nome de um bem jurídico dessa natureza através de uma presunção, está a conformar-se com uma dada probabilidade de restringir o direito à liberdade do terceiro em nome de um direito que não sofreu perigo concreto e, além disso, com uma equivalente probabilidade de restringir o exercício desse mesmo direito por parte do seu portador. Conforme afirma Augusto Silva Dias, op. cit. , p. 123, em termos que ajudam a ilustrar esta perspetiva: «Descrições típi- cas abrangentes que não explicitam suficientemente de que modo as condutas provocam a perda ou redução do valor da integridade pessoal para o seu titular (…), acabam por misturar casos de coisificação com casos de objetivação voluntária do próprio ser humano, isto é, casos de negação da identidade pessoal com situações de exercício normal dessa liberdade.» Importa notar que o lenocínio apresenta, neste ponto, uma relevante particularidade em relação a outros crimes destinados a tutelar a liberdade sexual: o seu objeto direto ou imediato não é a própria prática dos atos sexuais em que se traduz a prostituição, mas o ato de fomentar, facilitar ou favorecer essa prática. Por essa razão, não se afigura necessariamente de concluir que este tipo legal de crime comporte uma restrição desproporcional da liberdade sexual de quem se prostitui: o tipo legal não veda essa prática, embora limite as condições em que a mesma pode ser desenvolvida, designadamente a possibilidade de associação de quem se prostitui a uma pessoa ou organização de pessoas que fomente, facilite ou favoreça essa prática. Porém, se não se perder de vista que o único desígnio constitucionalmente legítimo deste tipo legal de crime seria o de tutelar a liberdade sexual de quem se prostitui, e que a sua estrutura é a de uma presunção (melhor, de uma cadeia de presunções) segundo a qual essa pessoa não prestou o seu acordo àquela prática, a perspetiva exposta não deixa de se lhe aplicar: o fundamento último do tipo legal não deixa de ser a tutela de um direito que, em face da conduta tipicamente descrita, pode plausivelmente ter sido exercido pelo seu portador. A criação de crimes de perigo abstrato em nome da tutela da liberdade sexual, ou de outro bem jurídico suscetível de acordo, não está terminantemente excluída em termos constitucionais. Contudo, quando o nexo entre a factualidade típica e o bem jurídico tutelado ou pretensamente tutelado for débil, como se con- cluiu ser aqui o caso ( supra , ponto 13), então, a circunstância de esse bem jurídico ser um bem jurídico susce- tível de acordo empresta ainda força suplementar à conclusão – já decorrente, sem mais, daquela debilidade – de que o tipo legal de crime comporta uma restrição desproporcional do direito à liberdade (consagrado no artigo 27.º da Constituição) de quem, ainda que profissionalmente ou com intuito lucrativo, facilite, fomente ou favoreça a prática da prostituição por outra pessoa. Desenvolvendo-se aquela conduta dentro de um espaço em que, perante o recorte típico da norma incriminatória, a livre disposição do bem jurídico por parte de quem se prostitui se mostra plausível, a sua criminalização não pode deixar de considerar-se desproporcional. Pode conceder-se que esta norma incriminatória seja adequada a tutelar a liberdade sexual, no sentido de que esta constitui um bem jurídico digno de pena e de que a conduta tipicamente descrita é objetivamente apta a abranger situações em que essa liberdade foi exposta a um perigo concreto de lesão. No entanto, a

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