TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020
268 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL necessidade económica ou social do agente que se prostitui, mas antes que tais situações comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social» (destaques nossos). É certo que ambos os arestos referem que essa exploração «interfer[e] com – colocando em perigo – a autonomia e liberdade do agente que se prostitui». O facto é que essa exploração não faz parte do tipo legal e está já, portanto, ela própria, a ser pressuposta. A feição que o problema afinal assume é, então, a seguinte: a única linha de entendimento capaz de ainda relacionar este tipo legal de crime com a tutela de bens jurídicos ( sc. , aquela segundo a qual ele constitui um crime de perigo abstrato destinado a tutelar a liberdade sexual de quem se prostitui) assenta, em última análise, num perigo de verificação de um elemento que não consta desse tipo legal de crime ( sc. , a exploração de uma situação de vulnerabilidade dessas pessoas). Portanto, assim interpretado, o tipo legal de crime envolve duas presunções (não deve tentar evitar-se o termo, pois nos crimes de perigo abstrato é de presunções que se trata: cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral. Tomo I, 3.ª edição, 2019, Gestlegal, p. 360), uma das quais, além de frágil (cf. supra , o ponto 10), se suporta ainda na outra, podendo neste sentido dizer-se estarmos perante um crime de perigo duplamente abstrato. Talvez mais exatamente: de um crime de perigo abstrato elevado ao quadrado, em que: (i) a base é a presunção de que a exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem prostitui encerra tipicamente um perigo para a sua liberdade sexual; e (ii) o expoente é a presunção de que a conduta de quem, profissio- nalmente ou com intuito lucrativo, fomente, favoreça ou facilite a exercício de prostituição encerra tipica- mente um perigo de exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui. Em resultado desse processo de exponenciação, o âmbito da proibição é muito mais extenso do que aquele que, considerado o bem jurídico que se procura tutelar, seria o seu âmbito natural. Entre este âmbito natural e aquele âmbito exponenciado está um conjunto indiferenciado de condutas que decerto incluirá situações em que há perigo concreto de lesão ou até dano do bem jurídico, mas isto constituirá uma pura contingência, pois nada há no tipo legal de crime que cuide realmente de direcioná-lo para a punição desses casos. É um dos aspetos que o separa de tipos legais como o da condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292.º do Código Penal, em que o perigo de lesão é imanente a toda e qualquer das condutas abrangidas pela norma incriminatória e, por isso, resguarda o tipo legal de crime do argumento de que não é necessária uma intervenção penal tão antecipada. 14. Nos tipos legais de crime que almejam a tutela da liberdade sexual, o assentimento – mais espe- cificamente, o acordo – do portador concreto do bem jurídico não se limita a traçar uma fronteira entre comportamentos ofensivos e comportamentos inócuos para o bem jurídico, nem uma fronteira entre ofensas intoleráveis e ofensas transigíveis ao bem jurídico, mas uma fronteira entre comportamentos ofensivos do bem jurídico e comportamentos potencialmente necessários à satisfação do bem jurídico (vide Manuel da Costa Andrade, Consentimento e Acordo em Direito Penal (Contributo para a Fundamentação de um Paradigma Dualista), Coimbra Editora, 1991, pp. 362 e seguintes et passim ). Por isso que a prática de atos sexuais entre adultos sem o acordo de um deles constitua uma conduta que indiscutivelmente reclama a intervenção do direito penal, mas que a prática de tais atos de forma consensual seja, mais do que lícita, uma expressão igualmente indiscutível desse mesmo bem jurídico. Isso significa que esses tipos legais envolvem, que têm sempre latente, um potencial efeito restritivo sobre o próprio bem jurídico que justifica a sua existência. Esta conceção dualista do assentimento ou da concordância do portador concreto do bem jurídico – conceção que se mantém incontrovertida – pode, aliás, ser invocada em abono da interpretação restritiva acima referida (no ponto 12), segundo a qual o tipo legal de crime do lenocínio simples continua a pressupor a exploração de uma situação de especial vulnera- bilidade de quem se prostitui. Contudo, as mesmas razões então indicadas permanecem aqui válidas: essa afigura-se uma interpretação contra legem , sendo antes forçoso concluir que o legislador pretendeu de facto criminalizar, quando praticada profissionalmente ou com intuito lucrativo, a conduta de fomentar, facilitar ou favorecer a prostituição independentemente de a pessoa que se prostitui ter oferecido o seu acordo à prá- tica dos atos sexuais em que a mesma se traduz. De resto, como já se referiu, a própria exigência de que haja
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