TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020
267 acórdão n.º 134/20 Admitindo que aquela «normal associação» existe, deve em qualquer caso questionar-se se ela permite sustentar um tipo legal de crime com uma estrutura de perigo abstrato. Conforme expõe a este respeito Car- lota Pizarro de Almeida, op. cit. , pp. 31 e seguintes: «A mera associação (incidindo sobre regularidades esta- tísticas) pode servir de fundamento a uma presunção, mas não é suficiente para a criação de crimes de perigo. (...) Há uma diferença de fundo entre esta situação e os crimes de perigo abstrato: nestes últimos, o agente só é punível se realizar (efetiva e dolosamente) a atividade de que cuida a incriminação – a qual consiste num início do iter criminis que levará (ou levaria) presumivelmente (com base na experiência) à concretização do perigo e eventualmente da lesão (numa relação vertical, de causalidade); no primeiro caso, induz-se, a partir de certos indícios, a verificação (concomitante, mas numa relação apenas horizontal, de coincidência) da conduta proibida e que não se logra provar. Ora em direito penal, como é para todos evidente, não pode haver lugar a presunções sobre a prática do facto proibido (e menos ainda inelidíveis, como seria o caso), pois tal hipótese colide frontalmente com o princípio da presunção de inocência.» É esta, de resto, a única visão consentânea com o fundamento da admissibilidade genérica do recurso aos crimes de perigo abstrato: o de constituir uma técnica criminalizadora necessária a um direito penal «adequado à sociedade do risco» (Jorge de Figueiredo Dias, op. cit. , p. 38). Baseada numa mera associação, que não num autêntico nexo causal de perigosidade, a norma incriminatória perde o seu referente teleológico, expondo-se à crítica de que «pune o que não consegue provar por não conseguir provar o que quer punir» (Pedro Soares de Albergaria / Pedro Mendes Lima, op. cit. , p. 209). Desse modo – pode acrescentar-se – a norma conforma-se com a eventuali- dade de punir também, pelo menos em parte, o que não quer sequer punir, razão pela qual pode duvidar-se que um tipo legal de crime com estas características traduza sequer uma vontade da maioria. Por outro lado, a configuração de uma norma como crime de perigo abstrato traz consigo particulares exigências no plano da tipicidade – é dizer, da determinabilidade da conduta proibida. Como o Tribunal Constitucional já em várias ocasiões sustentou ( e. g. , nos Acórdãos n. os 20/91 e 426/91), é crucial que o bem jurídico tutelado possa ser claramente identificado e que a conduta típica seja descrita de forma especial- mente precisa. Relativamente à norma em apreço, até poderia considerar-se que a mesma satisfaz ambas as exigências: quanto à primeira, embora o bem jurídico pretensamente tutelado não seja absolutamente con- sensual, é de conceder que existem elementos suficientes para se concluir estar em causa a liberdade sexual; quanto à segunda, embora o tipo legal faça uso de elementos subjetivos e normativos, é relativamente indis- cutível o seu âmbito de incidência. O que falha redondamente na norma é o facto de dela não emergir uma possibilidade de conjugação suficientemente robusta entre a primeira e a segunda exigências. Nas palavras de Jorge de Figueiredo Dias / Maria João Antunes, “Da inconstitucionalidade da tipificação do lenocínio como crime de perigo abstrato”, in Estudos em Homenagem ao Senhor Conselheiro Presidente Joaquim de Sousa Ribeiro – Vol. I, Almedina, 2019, p. 157: «Por um lado, a conduta que tem aptidão para colocar em perigo os bens jurídicos dignos de pena – a conduta de exploração de uma situação de carência e desproteção social – não está tipicamente formulada; por outro, a conduta típica descrita não tem aptidão para colocar em perigo os bens jurídicos identificados pela jurisprudência constitucional.» De facto, como os autores notam, é a própria jurisprudência constitucional que tem reconhecido que o perigo pressuposto por este tipo legal de crime não é verdadeiramente o perigo de lesão da liberdade sexual, ou de qualquer outro direito titulado pela pessoa que se prostitui (à autonomia, à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade), mas o perigo de exploração de uma situação de especial vulnerabilidade em que a mesma se encontra. Ou seja, o perigo de verificação do elemento típico que o legislador retirou do tipo legal. Dá disto exemplo o Acórdão n.º 641/16, quando aí se afirma que «a ofensividade que legitima a intervenção penal assenta numa perspetiva fundada de que as situações de prostituição, relativamente às quais existe promoção e aproveita- mento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social», acompanhado pelo Acórdão n.º 90/18, onde se afirma: «não se pressupõe que as situações de prostituição estejam necessariamente associadas a carências sociais elevadas e que qual- quer comportamento de fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição comporta uma exploração da
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