TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

266 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 12. Na doutrina, mesmo quem se pronuncia pela não inconstitucionalidade tende a basear essa conclu- são numa interpretação restritiva do tipo legal de crime de lenocínio simples, de modo a considerá-lo aplicá- vel apenas a situações em que exista exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui. É disso exemplo Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 3.ª edição, 2015, p. 673. É também o caso de Inês Ferreira Leite, “A Tutela Penal da Liberdade Sexual”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal , 21, n.º 1 (2011), p. 82, para quem, «mais importante do que construir o bem jurídico tutelado em torno de uma interpretação acrítica do tipo penal, será reconstruir o tipo penal em função de uma interpretação valorativa da incriminação, tendo como farol a verificação da lesão ou da colocação em perigo da liberdade sexual». Porém, não se afigura possível, quer em face da sua letra, quer da sua história, quer, ainda, de considera- ções de índole sistemática, interpretar este tipo legal de crime no sentido de o mesmo exigir que tenha havido exploração de uma situação de vulnerabilidade da pessoa que se prostitui: essa exigência não só não consta do n.º 1 do artigo 169.º como foi assumidamente retirada dele pelo legislador e deslocada para a alínea d) do n.º 2 do mesmo preceito – ainda que em termos algo reconfigurados, visto bastar agora que tenha havido aproveitamento (não sendo já necessário que tenha havido exploração) de uma circunstância de especial vulnerabilidade da vítima -, passando portanto a constituir elemento qualificativo de um tipo legal de base que se pretendeu subsistisse sem ele. Pela impossibilidade de interpretar o tipo legal daquele modo restritivo conclui também, v. g ., Augusto Silva Dias, op. cit. , pp. 124 e seguintes. Deste modo, não poderia acolher-se uma interpretação dessa natureza sem que isso representasse uma denegação da intencionalidade normativa imprimida a esse tipo legal de crime pelo legislador, aqui sim em iminente ingerência na sua liberdade de conformação. A jurisprudência deste Tribunal, de resto, tem sempre suposto uma interpretação deste tipo legal de crime no sentido de o seu âmbito não estar cingido a hipóteses em que haja exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui, tendo inclusivamente explicitado já que o mesmo abrange casos de exercício de prostituição por «pessoa auto determinada» (Acórdão n.º 294/04). Simplesmente, tem concluído pela não inconstitucionalidade do tipo legal assim interpretado. 13. Se o Tribunal Constitucional tem entendido ser esse o único sentido normativo possível de extrair do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, e se tem entendido que esse tipo legal de crime visa ainda a prote- ção do bem jurídico «liberdade sexual», então é forçoso concluir que o Tribunal o concebe como um crime de perigo abstrato, técnica criminalizadora que, no entender também já expresso pelo Tribunal, apesar de envolver uma significativa antecipação da tutela de bens jurídicos, não se expõe necessariamente a inconsti- tucionalidade, na medida em que, inter alia , efetivamente se ligue ainda à proteção de bens jurídicos (vide por exemplo os Acórdãos n. os 426/91, 246/96, 7/99 e 95/01). O tipo legal de crime de lenocínio simples abrange situações em que não existe perigo concreto de lesão da liberdade sexual de quem se prostitui, mas isso seria ainda justificável pelo facto de à conduta típica ser inerente um perigo abstrato de lesão desse bem jurídico: a já referida «normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social». É este, pois, atualmente, o ponto essencial do debate. Contudo, o entendimento aqui acolhido é o de que nem mesmo entendido nesses termos este tipo legal de crime deixa de expor-se a um juízo de inconstitucionalidade, pelas razões que em seguida se apresentam. Em primeiro lugar pode questionar-se a solidez daquela premissa, bem como a necessidade de recurso à via da criminalização no confronto com outras medidas aptas a alcançar o mesmo objetivo com menor restrição de direitos fundamentais, designadamente a pura descriminalização do lenocínio e a regulamen- tação da prostituição, no plausível pressuposto de que «os riscos que [com o crime de lenocínio] se querem esconjurar (em todo o caso sempre existentes em algum grau) resultam mais da incriminação da atividade em causa (e assim da natureza “subterrânea”, clandestina, para que é remetida) do que dela mesma» (Pedro Soares de Albergaria / Pedro Mendes Lima, op. cit. , p. 238; já Anabela Miranda Rodrigues / Sónia Fidalgo, op. cit. , p. 799).

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