TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020
263 acórdão n.º 134/20 Nesta medida, esse regime diferenciado só abona e confirma a exigência de identificação de uma ofensa a um bem jurídico-penal, como condição de criminalização de um comportamento. Ora, não parece sustentável que a ideia geral e abstrata de dignidade da pessoa, desvinculada de qualquer dimensão garantística da autodeterminação de quem se prostitui, conserve ainda um conteúdo constitucional- mente determinado, capaz de validar a restrição a direitos fundamentais que a criminalização representa. Como vimos, a densificação e concretização jurídico-positiva dessa ideia, na ordem constitucional, são levadas a cabo pela consagração de direitos de defesa e de direitos sociais, cobrindo a dupla dimensão negativa e positiva da dignidade da pessoa. Por esse todo normativo é possível dar substância à posição constitucional de igual reconheci- mento e respeito de que cada pessoa, individualmente considerada, como ser único e diferenciado, goza. Mas falham de todo indicações normativas precisas, no plano constitucional, para fazer decorrer da dignidade da pessoa humana obrigações negativas de conduta, criminalmente sancionáveis, não impostas pela tutela de bens pessoais de outra pessoa. Desligado do seu sentido de imperativo de respeito pela personalidade concreta de todo e qualquer indivíduo, de não interferência lesiva da integridade das opções de vida pelos outros autonomamente tomadas, o conceito fica, no plano constitucional, como critério de comportamento de sujeitos privados, esvaziado de carga normativa própria. Só por uma conceção essencialista do que é postulado, em abstrato, pela condição humana, conceção preformada com base em valores de natureza ético-social e não decorrente de claras opções constitucionais, é viável concretizá-lo, através da definição de um modelo de conduta que impõe deveres, mesmo quando não está em causa qualquer dos direitos que o atributo da dignidade leva a reconhecer às pessoas que se dedicam à prostituição. Deste modo, a paradoxal objetivação, no plano das relações intersubjetivas, do atributo pessoal da dignidade, impositiva de deveres não correlacionados com o necessário respeito pela concreta autocon- formação da personalidade do outro, não é feita a partir de dados da própria Constituição, mas de uma ideia prévia e exógena a ela, com base na moral comum. Não se afigura, assim, que a intervenção do direito penal, neste domínio, vise “salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, como exige o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. Ela decorre, antes, da tutela dos “bons costumes”, conceito que, embora radique noutros complexos normativos e não se mostre con- cretizável por inferências retiradas da Constituição portuguesa – que, aliás, ao invés de outras leis fundamentais, não lhe faz qualquer referência −, é elevado a padrão constitucional, como fator de legitimação de uma incrimina- ção e, logo, de restrições a direitos fundamentais do agente do crime. Foi esta constitucionalização dos bons costumes, alojando-os na ideia, em abstrato, da dignidade da pessoa humana, que motivou a crítica generalizada da doutrina alemã à sentença do Tribunal Federal Administrativo ( Bundesverwaltungsgericht ), de 15 de dezembro de 1981 (caso Peep-Show ) – cfr., por todos, Henning v. Olshausen , Menschenwürde im Grundgesetz: Wertabsolutismus oder Selbsbestimmung? , in NJW, 1982, pp. 2221 e seguintes, W. Schatzschneider, “Rechtsordnung und Prostitution”, in NJW, 1985, pp.2793 e seguintes, e Christian Hillgruber, Der Schutz des Menschen vor sich selbst , München, 1992, pp. 104 e seguintes. Estava em causa a negação de uma autorização administrativa, que aquele tribunal entendeu justificada por exigência dos bons costumes, conside- rando-os um elemento integrante do “valor objetivo” do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º, n.º 1, da Grundgesetz . A crítica, em tons variados, incidiu precisamente sobre esta “conversão” de estatuto normativo daquele critério valorativo, tida por falha de apoio constitucional. Está fora de qualquer dúvida de que a proteção da liberdade sexual das pessoas está entre os fundamentos, não só “ético-sociais”, como também jurídico-constitucionais, da “vida em sociedade” (para utilizarmos a epígrafe da versão inicial do Código Penal de 1982). O que se contesta é que uma certa conceção de ordem moral (ainda que generalizadamente aceite no meio social) constitua, em si mesma, uma dimensão da garantia constitucional da dignidade da pessoa humana, justificando a sua aplicação autónoma no âmbito criminal, sem conexão com a tutela de um bem constitucionalmente definido e protegido. Há que concluir que a caracterização legal do crime de lenocínio, ao dispensar, após a revisão de 1998, como elemento estrutural do tipo, o aproveitamento pelo agente de uma situação de abandono social ou de carência económica da vítima, ultrapassa, com ofensa ao princípio da proporcionalidade, o que seria justificado pela função tutelar de um específico bem jurídico-penal.»
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