TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020
261 acórdão n.º 134/20 visa «proteger bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do direito penal – o que se tem hoje por ilegítimo». 4. Na jurisprudência constitucional, tem vingado uma posição eclética, que procura conjugar, como razão da incriminação, o interesse geral da sociedade e a tutela de um bem pessoal. Essa posição encontrou uma formulação sinteticamente expressiva nas alegações do Ministério Público, apre- sentadas nos autos em que foi proferido o Acórdão n.º 144/04. Aí se afirmou que «o crime de lenocínio do artigo 170.º do Código Penal visa a proteção de um bem jurídico complexo, que abarca o interesse geral da sociedade relativo à postura sexual e ao ganho honesto, como também a personalidade de quem seja visado pela conduta do agente». Para justificar que faz parte da teleologia da norma a tutela da “autonomia para a dignidade”, aquele aresto invoca a “normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social das pessoas que se dedicam à prostituição”. A carência de tutela penal estaria, de certo modo, in re ipsa , na “necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência”, necessidade que, segundo padrões de tipicidade e de normalidade social, é explorada por aqueles que fomentam, favorecem ou facilitam o exercício da prostituição. Daí o concluir-se que «o facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir da qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social». Mas, sem contestar esses índices de normalidade, a verdade é que, não sendo a prostituição um fenómeno de expressão uniforme, com a eliminação daquela exigência o legislador não evita consequências de sobreinclusão, do ponto de vista da necessidade de tutela da liberdade sexual da pessoa que se prostitui. Não excluindo do âmbito da incriminação os casos em que não se comprove o aproveitamento de uma especial situação de fragilidade, quanto às condições de uma real autonomia decisória, de alguém que possa ser considerado “vítima” dessa conduta, “o legislador incrimina comportamentos para além dos que ofendem o bem jurídico da liberdade sexual”, como se sustenta na declaração de voto da Conselheira Maria João Antunes, anexa ao Acórdão n.º 396/07. Compreende-se cabalmente que, estando em causa a disponibilização, mediante uma contrapartida monetária, de uma dimensão íntima da personalidade, para satisfação sexual de outro e com obtenção de ganhos (também) por um terceiro, o legislador penal seja aqui particularmente exigente quanto às garantias de uma decisão livre, não requerendo, no âmbito do n.º 1 do artigo 170.º, as formas qualificadas de perturbação da autonomia presentes nos outros tipos de crimes sexuais. Ainda se compreenderá que o aproveitamento objetivo de situações de desamparo seja o bastante, sem exigência de formas individualizadas de “pressão” sobre a vontade da vítima (contra, Anabela Rodrigues, ob. cit. , p. 519-520). Mas já fica por explicar, à luz da necessidade de tutela da liberdade sexual, porque é que é dispensável a comprovação de qualquer ofensa, ainda que apenas situativamente indiciada, desse bem jurídico. Essa constatação torna ineliminável, de acordo com o princípio da necessidade da intervenção penal, a busca de um outro bem jurídico-penal, para justificar a incriminação. O Acórdão n.º 144/04 – verdadeiro marco referencial nesta questão, pois fixou uma orientação seguida em todos os arestos posteriores (Acórdãos n. os 196/04, 303/04, 170/06, 396/07, 522/07, 591/07 e 141/2010) e tam- bém no Acórdão a que esta declaração se anexa – faz apelo direto à dignidade da pessoa humana, para validar jurídico-constitucionalmente (e não como “mera proteção de sentimentalismos ou de uma ordem moral conven- cional”) a incriminação do lenocínio. A dignidade da pessoa humana é a mais basilar ideia regulativa de toda a ordem jurídica. No plano constitucio- nal, é-lhe reconhecida a natureza de um dos dois fundamentos do Estado português (artigo 1.º da Constituição). Nessa qualidade, é fonte primária da disciplina da atuação dos poderes públicos para com as pessoas, nela radi- cando, não só como limite, mas também como tarefa, valorações constitutivas de princípios constitucionais, de direitos fundamentais de defesa, bem como de pretensões a prestações, no quadro dos direitos económicos, sociais e culturais.
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