TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020
254 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem. Não está, consequentemente, em causa qual- quer aspeto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo artigo 41.º, n.º 1, da Constituição, pois a liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por outro lado, nesta perspetiva, é irrelevante que a prostituição não seja proi- bida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de tercei- ros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio (artigo 135.º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de pornografia infantil [artigo 172.º, n.º 3, alínea e) , do Código Penal], sempre com fundamento na perspetiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consen- timento em determinados atos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que derivam do princípio da dignidade da pessoa humana. (…) As considerações antecedentes não implicam, obviamente, que haja um dever constitucional de incriminar as condutas previstas no artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal. Corresponde, porém, a citada incriminação a uma opção de política criminal (…), justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designa- das como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência. O facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social. Tal opção tem o sentido de evitar já o risco de tais situações de exploração, risco considerado elevado e não acei- tável, e é justificada pela prevenção dessas situações, concluindo-se pelos estudos empíricos que tal risco é elevado e existe, efetivamente, no nosso país, na medida em que as situações de prostituição estão associadas a carências sociais elevadas (…) não é tal opção inadequada ou desproporcional ao fim de proteger bens jurídicos pessoais rela- cionados com a autonomia e a liberdade. Ancora-se esta solução legal num ponto de vista que tem ainda amparo num princípio de ofensividade, à luz de um entendimento compatível com o Estado de Direito democrático, nos termos do qual se verificaria uma opção de política criminal baseada numa certa perceção do dano ou do perigo de certo dano associada à violação de deveres para com outrem – deveres de não aproveitamento e exploração económica de pessoas em estado de carência social […]. O entendimento subjacente à lei penal radica, em suma, na proteção por meios penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência, proteção diretamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana. Questão diversa que não está suscitada nos pre- sentes autos é a que se relaciona com a possibilidade processual de contraprova do perigo que serve de fundamento à incriminação em casos como o presente ou ainda, naturalmente, com a prova associada à aplicação dos critérios de censura de culpa do agente e da atenuação ou eventual exclusão de culpabilidade, em face das circunstâncias concretas do caso.» 8. O entendimento foi reiterado pelo Tribunal Constitucional v. g. nos Acórdãos n. os 196/04, 303/04, 170/06, 396/07, 522/07, 591/07, 141/10, 559/11, 605/11, 654/11, 203/12, 149/14, 641/16, 421/17, 694/17, 90/18 e 178/18. Se nestas decisões se reiterou o sentido decisório acolhido no Acórdão n.º 144/04, é aí também discernível um certo desígnio de reconciliação desse veredito de não inconstitucionalidade com o princípio do direito penal do bem jurídico, que na fundamentação daquele Acórdão desempenhara um papel discreto. Não que aí tenha sido exatamente renegado: a consideração dispensada ao princípio é visível
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