TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020
253 acórdão n.º 134/20 sentido da inconstitucionalidade, os Acórdãos n. os 25/84, 85/88, 426/91, 527/95, 288/98, 604/99, 312/00, 516/00, 99/02, 337/02, 617/06, 75/10 e 377/15). Não se divisam, nem aí nem na doutrina nacional, sintomas consideráveis de uma tendência para a preterição do princípio do bem jurídico como referência matricial do conceito material de crime em favor de outros como o da proteção do ordenamento jurídico ou o da proteção da vigência da norma (cfr. novamente Jorge de Figueiredo Dias, op. cit. , p. 40), nem razões bastantes para que as críticas que lhe podem plausivelmente ser apontadas sejam vistas como insuperáveis [cfr. e. g . Maria João Antunes, Constituição, Lei Penal e Controlo de Constitucionalidade, Almedina, 2019, pp. 43 e seguintes; José de Faria Costa, “Sobre o objeto de proteção do direito penal: o lugar do bem jurídico na doutrina de um direito não iliberal”, in Revista de Legislação e Juriprudência, 142, n.º 3978 (2013), pp. 158 e seguintes]. Contudo, naturalmente, a existência de consenso em torno deste princípio não impede a existên- cia de dissenso quanto à questão de saber se uma dada conduta se mostra ou não ofensiva – e suficientemente ofensiva – para algum bem jurídico com dignidade constitucional. É o que se verifica em relação à conduta criminalizada no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, cuja fiscalização é solicitada nos presentes autos. 7. O Tribunal Constitucional tem respondido a essa questão afirmativamente – ou seja, no sentido de que a conduta atualmente prevista no n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal se mostra suficientemente ofensiva para direitos e interesses constitucionalmente consagrados para que se não exponha a inconstitucio- nalidade no confronto com o parâmetro do artigo 18.º, n.º 2, da Lei Fundamental. Foi sempre assim desde a primeira vez em que sobre aquela norma foi chamado a pronunciar-se, no Acórdão n.º 144/04, onde se apresentou a seguinte fundamentação: «Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à norma do artigo 170.º, n.º 1, está inevitavelmente uma perspetiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Socie- dade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (…). Tal perspetiva não resulta de preconceitos morais, mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de ação, situações e atividades cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1.º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei n.º 23/80, em Diário da República , I Série, de 26 de julho de 1980), bem como, em 1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem ( Diário da República , I Série, de 10 de outubro de 1991). É claro que a esta perspetiva preside uma certa ideia cultural e histórica da pessoa e uma certa ideia do valor da sexualidade, bem como o reconhecimento do valor científico das análises empíricas que retratam o “mundo da prostituição” (e notese que neste terreno tem sido longo o percurso que conduziu o pensamento sociológico desde a caracterização da prostituição como anormalidade ou doença […] até ao reconhecimento de que as prostitutas são vítimas de exploração e produto de uma certa exclusão social). Mas tal horizonte de compreensão dos bens relevantes é sempre associado a ideias de autonomia e liberdade, valores da pessoa que estão diretamente em causa nas condutas que favorecem, organizam ou meramente se aproveitam da prostituição. Não se concebe, assim, uma mera proteção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particu- lar ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspetos de uma convivência social orientada por deveres de proteção para com pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspetiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da proteção da liberdade e de
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