TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020
252 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL um sentimento de censura ético-jurídica dominante na sua comunidade, é indispensável que essa conduta se mostre ofensiva – e suficientemente ofensiva – para um bem jurídico com dignidade constitucional. De facto, se à criminalização de uma conduta é inerente a restrição de um direito consagrado na Constituição (o direito à liberdade, consagrado no seu artigo 27.º) e se, consequentemente, a lei só pode restringir esse direito na medida necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses consagrados na Constituição (nos termos do seu artigo 18.º, n.º 2), a conclusão que se impõe é a de que a lei só pode criminalizar uma conduta na medida necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses consagrados na Constituição. Por outro lado, constituindo a restrição do direito à liberdade a consequência jurídica mais drástica de entre as que o ordenamento jurídico português admite, justifica-se que os limites da atuação legislativa que se traduza em sancionar uma dada conduta com essa consequência sejam entendidos como manifestações especialmente intensas do princípio da proporcionalidade. Não porque envolvam qualquer variação estrutu- ral desse princípio: trata-se, ainda aqui, essencialmente de procurar as linhas a partir das quais o parâmetro constitucional se opõe e impõe à vontade da maioria democraticamente organizada. Antes porque permitem que logo à partida se assuma que os juízos de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito em que o mesmo se desdobra só serão positivos quando a favor dessa restrição militem nítidas exigências de proteção de outros direitos fundamentais, podendo neste sentido considerar-se que a margem de liberdade do legislador ordinário na criminalização de condutas é menos ampla do que o é na generalidade da sua atuação. Daí que se justifique uma designação própria – “princípio do direito penal do bem jurídico” (vide sobre- tudo Jorge de Figueiredo Dias, “O «direito penal do bem jurídico» como princípio jurídico-constitucional – Da doutrina penal, da jurisprudência constitucional portuguesa e das suas relações”, in XXV Anos de Jurispru- dência Constitucional Portuguesa , Coimbra Editora, 2009, pp. 31 e seguintes) -, designação essa cujo alcance, portanto, não será apenas o de operar uma especificação temática do princípio da proporcionalidade para as matérias penais (e, mais particularmente, para a criminalização de condutas), mas o de denotar desde logo que essa especificação se funda no reconhecimento de uma suficiente autonomia taxonómica ao princípio do direito penal do bem jurídico, que o individualiza dentro do reino da proporcionalidade a que pertence. É essa autonomia que explica a utilização de conceitos também próprios no contexto do juízo de proporcio- nalidade que este princípio requer: fala-se aí de “dignidade de tutela penal” para significar a exigência de que exista um bem jurídico-constitucional que a norma incriminatória seja adequada a tutelar; de “carência de tutela penal”, ou de “subsidiariedade da intervenção penal”, para exprimir a exigência de que essa norma seja necessária para realizar essa tutela. Continua em qualquer caso geralmente a falar-se aí de “proporcionalidade em sentido estrito” para significar o exercício de ponderação dos direitos ou conjuntos de direitos que, venci- dos os dois testes anteriores, se vejam em conflito. Mas também aqui, ou talvez até sobretudo aqui, avultam as especificidades desta matéria, porque, conforme referido, um daqueles conjuntos integra necessariamente o direito à liberdade. Por fim, importa notar que, se a prática de certas condutas, de que é exemplo paradigmático a conduta de homicídio, não corresponde ao exercício de qualquer direito fundamental – caso em que a restrição do direito à liberdade, além de inerente à criminalização, tende a constituir o seu único efeito -, muitos (ou mesmo uma grande parte dos) tipos legais de crime previstos no nosso ordenamento jurídico-penal coen- volvem, pelo menos prima facie , uma restrição de outros direitos fundamentais. É disso exemplo o crime de difamação previsto no artigo 180.º do Código Penal, de que decorrem limites ao exercício das liberdades de expressão e de imprensa. Nestes casos, um juízo positivo de proporcionalidade tenderá a ser mais difícil do que em geral, na medida em que aí estejam de facto em causa, ao lado do direito à liberdade e no mesmo prato da balança que ele, outros direitos fundamentais ainda. No outro prato de balança terá de estar, não apenas um direito ou interesse constitucionalmente protegido, mas, nas palavras do Acórdão n.º 99/02, «um direito ou bem constitucional de primeira importância». O princípio do direito penal do bem jurídico constitui – pode dizer-se com segurança – um elemento sólido da jurisprudência deste Tribunal Constitucional (cfr., por exemplo, e embora nem todos prolatados no
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