TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 107.º Volume \ 2020

248 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL uma pura contingência, pois nada há no tipo legal de crime que cuide realmente de direcioná-lo para a punição desses casos. XII - O recurso à técnica do perigo abstrato na criminalização de comportamentos não está, por princípio, constitucionalmente vedado, porém os crimes de perigo abstrato, já de si adstritos a especiais con- dições constitucionais quando comparados com os crimes de dano e os crimes de perigo concreto – onde a ofensa ao bem jurídico é, respetivamente, certa ou mais próxima – são ainda mais difíceis de sustentar quando estejam em causa bens jurídicos suscetíveis de acordo, como a liberdade sexual; se o acordo do portador, mais do que tornar lícita a conduta do terceiro, a convoca à realização do bem jurídico, o legislador, ao criminalizar um comportamento em nome de um bem jurídico dessa natureza através de uma presunção, está a conformar-se com uma dada probabilidade de restringir o direito à liberdade do terceiro em nome de um direito que não sofreu perigo concreto e, além disso, com uma equivalente probabilidade de restringir o exercício desse mesmo direito por parte do seu portador. XIII - A criação de crimes de perigo abstrato em nome da tutela da liberdade sexual, ou de outro bem jurídico suscetível de acordo, não está terminantemente excluída em termos constitucionais; contu- do, quando o nexo entre a factualidade típica e o bem jurídico tutelado ou pretensamente tutelado for débil, como se concluiu ser aqui o caso, então, a circunstância de esse bem jurídico ser um bem jurídico suscetível de acordo empresta ainda força suplementar à conclusão – já decorrente, sem mais, daquela debilidade – de que o tipo legal de crime comporta uma restrição desproporcional do direito à liberdade (consagrado no artigo 27.º da Constituição) de quem, ainda que profissionalmente ou com intuito lucrativo, facilite, fomente ou favoreça a prática da prostituição por outra pessoa; desenvolvendo-se aquela conduta dentro de um espaço em que, perante o recorte típico da norma incriminatória, a livre disposição do bem jurídico por parte de quem se prostitui se mostra plausível, a sua criminalização não pode deixar de considerar-se desproporcional. XIV - Embora se possa conceder que esta norma incriminatória seja adequada a tutelar a liberdade sexual, no sentido de que esta constitui um bem jurídico digno de pena e de que a conduta tipicamente descrita é objetivamente apta a abranger situações em que essa liberdade foi exposta a um perigo concreto de lesão, a norma não resiste ao teste da necessidade: a extrema fragilidade do nexo entre a conduta que aí é descrita e o único bem jurídico que a norma poderia tutelar, acrescida do facto de a mesma abranger situações em que há até um exercício da liberdade sexual por parte de quem se prostitui, não permitem a conclusão de que tal norma seja necessária para tutelar esse direito; mesmo persistindo na via da criminalização, o legislador poderia empreender essa tutela com signi­ ficativamente menor restrição do direito à liberdade, através de um recorte típico que, podendo porventura ainda configurar-se como crime de perigo abstrato, apresente um autêntico nexo de perigosidade típica entre conduta e bem jurídico; poderia então ainda discutir-se a proporcionalida- de em sentido estrito da norma, mas pelo menos estar-se-ia já num contexto de verdadeiro conflito de direitos e interesses constitucionais; pelo contrário, a vigente norma incriminatória restringe um direito (à liberdade) em nome de um outro (à liberdade sexual) que pode plausivelmente não ter sido colocado em perigo concreto e ter até sido livremente exercido pelo seu titular, circunstância em que não há, portanto, carência de tutela penal.

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